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Cada um com o seu remédio

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Na comédia dramática “Cocoon” (1985), de Ron Howard, idosos de uma casa de repouso são rejuvenescidos após mergulharem em piscina ocupada por alienígenas

Apesar de, no debate público no Brasil, o envelhecimento da população ser um fenômeno muitas vezes percebido apenas como ampliação de despesas, seja na saúde, seja na Previdência Social, a dinâmica demográfica é também fonte de geração de riqueza na economia. Vários setores começam a sentir os efeitos da transformação na estrutura de consumo das famílias, agora com mais idosos e menos crianças.

Uma das indústrias mais suscetíveis à economia da longevidade é a farmacêutica. Nos últimos 20 anos, o envelhecimento populacional fomentou a expansão de um segmento sempre identificado como alternativo ou de nicho: o dos medicamentos manipulados ou personalizados.

A principal causa dessa ascensão, verificada em inúmeros países, é a heterogeneidade da população idosa. Ninguém envelhece do mesmo jeito e, portanto, isso amplia o desafio da indústria farmacêutica tradicional de fabricar um produto capaz de atender de forma linear a pacientes com necessidades específicas. Assim como a tendência de customização espalhou-se pela cesta de compras do consumidor do século XXI – de apartamentos à moda, de automóveis à alimentação -, o envelhecimento fez essa exigência surgir com força nos medicamentos. Cada pessoa idosa quer o seu remédio, e o aumento das vendas dos personalizados já provoca ciúmes na poderosa indústria farmacêutica tradicional.

Nos últimos cinco anos, o número de farmácias magistrais no Brasil cresceu cerca de 15%, somando 7,2 mil estabelecimentos, sendo 2.599 só no Estado de São Paulo, segundo dados do Conselho Federal de Farmácia (CRF). É quase 10% do total de farmácias do país (74,5 mil). O envelhecimento da população empurrou a indústria de personalizados para novos produtos, como cosméticos e suplementos alimentares. De acordo com o panorama setorial da Associação das Farmácias Magistrais (Anfarmag), essa estratégia possibilitou um aumento de faturamento em 39% das farmácias, em 2016, e 34% delas mantiveram a mesma receita bruta do ano anterior. Houve queda em apenas 27%.

“Antigamente havia muita desconfiança, mas hoje esse segmento se profissionalizou muito, é altamente regulamentado e não nos preocupa em termos de quantidade ou qualidade em relação à saúde pública ou desempenho profissional”, afirma Antônio Pereira Filho, do Conselho Regional de Medicina de São Paulo. O número de autuações de médicos, por ano, pelo Cremesp é de 20 a 30. Mesmo assim, as irregularidades dizem respeito a bonificação do profissional – uma infração ética -, e não a fatores de risco para o paciente. “A prescrição de fórmulas magistrais é antiga, remete à Idade Média. Agora, o envelhecimento nos faz retornar a isso porque é mais fácil para um idoso manipular uma fórmula do que tomar 6, 7 e até 10 remédios por dia. Melhora muito a adesão ao tratamento”, explica.

Em 30 anos no setor, a farmacêutica Regina Stela Schaefe Guedes, formada pela Universidade de São Paulo, acompanhou a evolução do mercado nessas décadas. Em 1994, ela adquiriu a Almofariz, com duas lojas em São Paulo. “O crescimento do setor decorre de um alto padrão de controle, rastreabilidade dos componentes utilizados, normas. É um processo tão seguro quanto o da indústria”, afirma. Regina tem o típico perfil dos empresários do setor de magistrais, no qual 71% dos estabelecimentos são comandados por mulheres, segundo a Anfarmag. Mais de 60% dos proprietários têm até duas lojas e 94% são empresas pequenas (recolhem o Simples). Em 88% o farmacêutico é o dono da farmácia.

Isso explica o baixo número de autuações do CRF por ausência desse profissional nos estabelecimentos. Nos últimos três anos, a média anual é de 21 infrações no universo de 2.599 estabelecimentos paulistas. “O envelhecimento é um grande fator. Essa característica de proximidade do dono, do farmacêutico, proporciona uma interação direta e diferencial com o cliente idoso, que vai à loja para conversar e acaba até revelando coisas que não diz ao médico, estabelecemos outra relação”, conta. A economia da longevidade é a responsável por Regina, a partir deste ano, deixar o perfil padrão do farmacêutico magistral. Ela está comprando outras três farmácias de uma vez só, tornando-se uma rede.

O aumento do mercado brasileiro atrai investimentos nacionais e estrangeiros. Embora os números sejam fornecidos pelos fabricantes, por falta de auditoria oficial eles são compatíveis com os números oficiais do varejo. A brasileira Galena, líder no segmento no país, informa que teve crescimento de 16% no ano passado e de 22,5% no mercado de suplementos alimentares e nutracêuticos, possibilitando mitigar dificuldades do passado. “Não tem crise no nosso mercado, e o envelhecimento ajudou muito nisso porque agora se busca mais saúde preventiva com a longevidade”, afirma Claudia Coral, diretora da Galena.

Segundo ela, o crescimento poderia ser maior se houvesse mais informação para o cliente e, sobretudo, para o médico. Esse tem sido o maior investimento da indústria. “O medicamento magistral tem como fonte a própria natureza, e é impossível encontrar prevenção em produto sintético”, afirma.

Nos últimos cinco anos, o número de farmácias magistrais no Brasil cresceu cerca de 15%, somando 7,2 mil estabelecimentos, sendo 2.599 só no Estado de São Paulo

É o mesmo argumento do farmacêutico espanhol Rafael Padilla, que acaba de deixar a liderança da América Latina da Fagron, multinacional belga-holandesa, para assumir o comando mundial da empresa líder em todo o planeta. A Fagron está presente em 30 países e tem produtos comercializados em mais de 60. “O medicamento magistral trabalha com o conceito de homeostase, ou seja, tem uma visão holística, integrativa, isso é impossível para o produto sintético”, diz. Padilla vê o magistral muito próximo da medicina ortomolecular e da medicina chinesa. “É algo semelhante a alimentação, a gastronomia”, compara.

No ano passado, a Fagron registrou um faturamento líquido de R$ 368 milhões e R$ 450 milhões brutos, crescimento de 8% em relação a 2016. Em volume, segundo Padilla, o aumento foi de 20%. Há dez anos no Brasil, o grupo Fagron investe em um crescimento orgânico e também por fusão e aquisição, e soma hoje seis empresas além da marca mãe (Infinity Pharma, Floren, Via Farma, Fagron Technologies, All Chemistry e Fagron Berrini), além da fábrica em Anápolis (GO). A compra de empresas médias e startups somou R$ 291 milhões e mais R$ 60 milhões foram investidos em marketing, eventos e pessoal especializado.

“Vamos continuar a crescer porque temos uma boa expectativa no mercado brasileiro e bom background da estrutura de inovação montada lá fora”, diz Ivan Maróstica, brasileiro que substituiu Padilla na liderança latino-americana do grupo.

As demandas do envelhecimento guardam relação estreita com o crescimento da Fagron. Um dos produtos mais bem-sucedidos da empresa é destinado ao Distúrbio Androgênico do Envelhecimento Masculino (Daem), que causa declínio de energia e memória, depressão e disfunção erétil. A atuação em nichos específicos do envelhecimento é uma estratégia adotada pela indústria magistral – seja patologia séria, seja prevenção, seja estética. “O consumidor moderno busca individualização. A longevidade abre a perspectiva de que a prevenção começará mais cedo e vai durar mais tempo de consumo”, afirma Marco Fiaschetti, diretor-executivo da Anfarmag. Desde 2000, lembra Fiaschetti, o mercado viveu uma evolução sob as normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). São mais de 300 normas que provocaram a profissionalização e estão transformando um nicho em segmento robusto. Essa perspectiva, segundo ele, ampliará a média anual de faturamento de R$ 5 bilhões que as farmácias magistrais registraram nos últimos anos.

A concorrência ainda é entre Davi e Golias, mas esses números começam a causar ciúmes na indústria farmacêutica tradicional. O principal elemento nessa concorrência é o tempo, e não o valor. Enquanto o segmento de magistrais tem autorização para utilizar um grande leque de componentes sem a necessidade de registrar as fórmulas na Anvisa ou por patente, a indústria tradicional precisa cumprir esse procedimento devido a abrangência do produto (de massa) ou dos elementos químicos utilizados nas fórmulas, além da proteção da propriedade intelectual. “Esse segmento está crescendo muito, e nós vemos com preocupação, temos alertado a Anvisa sobre o risco do ponto de vista sanitário”, afirma Nelson Mussolini, presidente-executivo do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos no Estado de São Paulo (Sindusfarma). “A fiscalização das farmácias, se não é inexistente, é precária.”

Na opinião de Mussolini, a Anvisa faz exigências na produção da indústria farmacêutica, como uso de água, ambiente de produção, fornecedores, importação e, sobretudo, utilização de alguns insumos, que negligencia com os medicamentos magistrais. “A concorrência com os magistrais é uma concorrência desleal. Há tempos colocamos esse problema para a Anvisa, nós cumprimos as regras”, diz.

Segundo a Anvisa, não há nenhuma discussão sobre esse mercado no momento, além da regulamentação vigente. À insatisfação com o peso da concorrência soma-se o problema de rentabilidade do setor farmacêutico tradicional nos últimos anos, em média de 11% (nominal, sem descontar a inflação). O crescimento em volume, do ano passado, foi de apenas 4,5%. “O mercado de manipulados já atua em escala industrial, faz estoque, visita médico. A regulação para eles não é tão rígida, portanto atuam num tempo mais curto para fabricar esses produtos”, afirma Mussolini.

O segundo fator a acirrar a concorrência é o preço. Na indústria farmacêutica tradicional, 75% dos medicamentos têm preço controlado pelo governo. “Temos tido um percentual de reajuste abaixo da inflação. Isso reduz a rentabilidade do setor e limita os investimentos e a inovação”, afirma Mussolini. No setor de magistrais ou personalizados, o preço pesa menos. “Nem sempre é mais barato, mas é competitivo porque o medicamento magistral trabalha com outros atributos, como o fato de ser natural, individualizado, integrativo”, afirma Padilla. “É uma briga grande com a indústria tradicional, grande e política. O fato de nossas fórmulas não exigirem registro como os outros é tecnicamente justificável”, afirma Cláudia Coral.

As fórmulas magistrais seguem as exigências de um formulário nacional ou internacional reconhecido pela Anvisa. Muitas vezes o embate chega ao Congresso Nacional, onde ocorre uma das principais batalhas para proibir a atuação dos magistrais ou o uso de alguns insumos, acusados de causar malefícios à saúde, como os anorexígenos. Na maioria das vezes, porém, a guerra ocorre na Anvisa. Uma das questões foi a publicidade dos medicamentos e das farmácias magistrais. A questão fez a Anvisa editar uma resolução, em 2008, e uma cartilha sobre o tema.

A mudança de comportamento das pessoas diante do fenômeno da longevidade, porém, é o grande aliado do mercado de magistrais. Envelhecimento saudável, bem-estar, desintoxicação e alimentação natural são conceitos cada vez mais presentes nos consultórios médicos e “ninguém quer se encher de remédio”, como se repete por todos os lados. “Toda a minha prescrição se dá com medicamentos manipulados ou individualizados”, afirma o nutrólogo Theo Webert, especializado em prevenção e qualidade de vida. “A junção de alguns ativos é cada vez mais eficaz. A longevidade estimula o menor uso de medicamentos em busca de uma vida mais saudável pelo maior tempo possível.”

O sinal da estreita correlação entre o envelhecimento populacional e o segmento de magistrais são as especialidades médicas que mais prescrevem esse tipo de medicamento. Em primeiro lugar, dermatologistas (70%), seguidos de ortopedistas (27%, sobretudo para artrite e artrose), endocrinologistas (25%), nutricionistas (23%) e cardiologistas (22%), segundo pesquisa da Anfarmag. Esse quadro segue a tendência de países mais envelhecidos que o Brasil, onde esse mercado também tem crescido, como Alemanha (20%), Polônia (7%), República Tcheca (20%) e Holanda (7%), segundo dados da Fagron.

O Brasil tem hoje 14,4% de sua população com mais de 60 anos, e as projeções do IBGE dão conta de o país atingir em torno de 30% em 2050. A evolução de um nicho como o dos medicamentospersonalizados é apenas um exemplo das transformações suscitas pela nova dinâmica demográfica que transformará “todos os setores da economia”, como afirma o relatório Growing Europe Silver Economy (Desenvolvendo a Economia da Longevidade da Europa), publicado pela Comissão Europeia, em 2015. Vários setores já perceberam que o novo perfil demográfico do país é uma fonte de geração de valor. Mas, como sempre, é preciso estar sensível para essa grande revolução.

Fonte: Valor Online

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