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Nova “classe média” está menos vulnerável em tempos de crise

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“Eu atuava em um centro cultural e via como as pessoas estavam transformando a cultura e a arte em um ‘lugar de fala'”, diz o professor André Raimundo dos Santos

O avô de Carlos era mineiro. O de André, sergipano. A avó de Adriana é paulista. O bisavô de Dayanne era baiano. No começo do milênio, essa nova geração passou a fazer parte da emergente classe média brasileira.

O sobrenome da família de Carlos, de 35 anos, seria Andrade, mas no momento do registro no cartório, em tempos pregressos, saiu escrito André. Então Carlos André, descendente de escravos, percebeu que as palavras são livres, ganham vida própria. Por linhas nem sempre retas, fez letras e pós-graduação, tornou-se professor de literatura e escritor. Músico amador, frequenta saraus e acalenta um projeto autoral de mesclar música popular brasileira com poesia modernista.

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Adriana Barbosa, de 41 anos, aprendeu com a avó negra e semialfabetizada a obter sustento do que tivesse em casa. A avó quituteira abria a despensa da cozinha e tirava leite de pedra. Adriana, que começou a vida vendendo roupas na rua para ganhar algum trocado, cursou gestão de eventos, especializou-se em gestão cultural e virou empresária ao fundar a Feira Preta. A feira transformou-se em um movimento afirmativo da cultura e do empreendedorismo negro, que no ano passado juntou 50 mil pessoas.

Do povoado mineiro de Santo Antônio do Mucuri (a 443km de Belo Horizonte), Dayanne Silva Pego, de 32 anos, foi a São Paulo para trabalhar como empregada doméstica e babá. Nunca tinha visto prédio, hambúrguer e batata frita. Na infância de terra batida, construía os próprios brinquedos, escalava árvores e fruía o passar do tempo. Só quando cursou a faculdade de pedagogia na cidade grande, deu-se conta que tinha praticado a antroposofia de Rudolf Steiner (1861-1925) na raiz. Hoje leciona para crianças em uma escola Waldorf em Vinhedo, interior paulista.

O avô de André Raimundo dos Santos, de 40 anos, viveu no meio do cangaço no sertão e chegou a jogar capoeira sob os ensinamentos de Mestre Bimba (1899-1974). Levou a capoeira para São Paulo, acreditando no papel formador dessa cultura marginalizada. O pai lutou na capoeira e também por direitos trabalhistas, no sindicato dos engenheiros que presidiu. André Raimundo cresceu em meio a um caldo cultural de militância. Mas foi com o diploma na faculdade de belas-artes que ganhou legitimidade como artista, tornando-se professor.

Essas histórias fazem parte de um contexto auspicioso da economia brasileira. Na primeira década dos anos 2000, a junção entre estabilidade da moeda, alta das commodities, expansão de emprego, renda e crédito, valorização do salário mínimo, políticas sociais e redistributivas abriu o horizonte de oportunidades para as classes desfavorecidas. O brasileiro pôde comprar mais alimentos, como proteína, mas também investiu em moradia, saúde, transporte, estética pessoal e bens duráveis – o consumo deste último saltou 104% entre 2000 e 2012, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

O maior acesso a bens culturais, à formação técnica e à educação superior veio no bojo do crescimento econômico. As estatísticas tradicionais que contabilizam a venda de livros físicos, ingressos de cinema e CDs não captam bem a realidade. Segundo esses indicadores, o consumo de bens culturais não teria acompanhado o de bens duráveis que houve na ascensão da classe média entre 2003 e 2012. Mas, diferentemente do que dizem os números, o especialista em economia do entretenimento Fábio Sá Earp, professor da UFRJ, suspeita que o consumo de bens culturais, na verdade, tenha crescido – e muito.

O que mudou foi o meio: música por streaming, cinema por Netflix, acesso gratuito a textos pela internet, além do uso de apostilas e livros de segunda mão nas escolas, sem falar na pirataria que o mundo digital possibilita, de filmes e canais por satélite a livros, a exemplo da Library Genesis, um imenso acervo que pode ser baixado gratuitamente.

Em 2014, quase metade das compras de computadores, notebooks e tablets foi efetuada por pessoas que o fizeram pela primeira vez na vida, segundo dados da Fundação Getulio Vargas. O acesso a conectividade digital e a aparelhos celulares e eletrônicos mantém-se em alta. Mesmo com a recente crise, 93% da classe C hoje possui smartphone, enquanto o número de pessoas conectadas na internet passou de 37%, em 2008, para 68%, em 2018, segundo estudo do Instituto Locomotiva preparado para o Valor com base na análise e projeção de dados do IBGE.

Nos últimos dez anos, ainda de acordo com o Locomotiva, a média de anos de estudo na classe C aumentou 21%. O Censo de Educação Superior mostra uma evolução clara do acesso à universidade no Brasil desde 1995, especialmente na particular. Em paralelo a isso, a procura por cursos técnicos disparou a partir de 2004, com os jovens trabalhadores buscando qualificação.

Quem pôde aproveitar o acesso a bens culturais e de formação alterou seu rumo de vida, rompendo com a histórica imobilidade socioeconômica que caracteriza o Brasil de raízes escravocratas. Como se diz, conhecimento é um bem que, uma vez adquirido, dificilmente se perde. Mas pode ser desperdiçado quando vem a crise.

Passado o período da bonança, que desembocou na mais prolongada retração da histórica econômica brasileira, pessoas como Adriana, André, Carlos e Dayanne tinham acumulado bagagem que as tornaram mais resilientes para lidar com as adversidades. “Cada ano no ensino superior eleva em 21% a renda. E no curso técnico, em 14%”, diz o economista Marcelo Neri, da Escola Brasileira de Economia e Finanças da FGV.

O problema foi terem vislumbrado horizontes que depois se fecharam, gerando frustração. Quando não, um sentimento que Carlos André classifica como “luto”. “O que se perdeu é a perspectiva de longo prazo, que vinha em um crescente desde o Plano Real, e hoje se reduziu”, afirma Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva. “A nova geração da classe média não tem mais as mesmas oportunidades que a geração de dez anos atrás teve.” Esta, por sua vez, compara a situação presente com o que lá atrás imaginava alcançar. Daí a angústia.

O primeiro de sua família por parte de pai a entrar em uma universidade, Carlos sabe que o seu feito histórico foi apenas um sopro na linha do tempo. Os dois irmãos mais novos já não conseguiram ingressar. As políticas de inclusão no ensino superior, como sistema de cotas, Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e Programa Universidade para Todos (Prouni) se mantiveram, mas a questão foi a piora do ambiente econômico, iniciado no governo Dilma Rousseff (PT). O PIB teve crescimento de apenas 0,5% em 2014 e queda de 3,55% (2015) e 3,31% (2016). “São pessoas que precisam trabalhar muito, correr atrás e simplesmente não conseguem estudar”, diz ele nesta entrevista concedida aos pés do Masp, durante a manifestação contra os cortes na educação do dia 15.

Carlos formou-se em letras na Uniban, onde ingressou após ter obtido 100% de bolsa pelo Prouni ao gabaritar a prova. Fez ainda pós-graduação em revisão textual e hoje ganha até R$ 12 por hora/aula. É o que o Estado paga ao professor da rede pública no ensino médio. Ele não vê perspectiva na carreira letiva, tanto que tem se desdobrado na atividade de escritor, produzindo textos e dando oficinas de literatura, além de se apresentar como músico em saraus e lançamentos de livro.

Nesse ambiente de produção cultural das periferias, que continua prolífico a despeito da crise, Carlos montou o projeto que reuniria MPB e modernismo. “Achei que ia ficar rico com isso [risos]. Não deu certo ainda porque a gente precisou voltar ao nível básico de buscar a sobrevivência”, diz o pai de dois filhos pequenos, moradores de Diadema, na Grande São Paulo. Antes de diversão e arte, comida.

Em que pesem as condições mais adversas da economia, os sonhos suspensos e a precariedade da escola pública onde leciona, Carlos sente que um legado ficou. Entre seus alunos, não passa pela cabeça a ideia de não fazer curso superior. “Na minha geração, universidade parecia algo de outro mundo. A USP não existia para a gente. Com a implementação das políticas de inclusão universitária, a atual geração de 15 a 17 anos tem certeza de que vai para a faculdade”, diz. “Houve uma mudança no inconsciente coletivo.”

Os olhos de André Raimundo dos Santos brilham quando se lembra do início de sua vida adulta em São Paulo, recém-chegado de São José dos Campos (a 94 km da capital paulista), onde nasceu. “Na infância eu era classe média mediazinha. Depois, virei classe média mesmo”, afirma. Ele chegou a São Paulo na transição do governo Fernando Henrique Cardoso para o de Luiz Inácio Lula da Silva. Começou trabalhando no estacionamento do Anhembi, enquanto se esforçava para pagar a faculdade de belas-artes à noite. Teve de parar, mas, por meio do Fies e mais 75% da bolsa que obteve, conseguiu se formar.

“Com o Plano Real, Lula e Dilma, sinto que o Brasil estava indo em frente. Eu atuava em um centro cultural e via como as pessoas estavam transformando a cultura e a arte em um ‘lugar de fala’, como tanto se diz hoje.” André também ganhava R$ 700 como estagiário no Sesc, o que cobria toda a despesa do aluguel em uma casa confortável no bairro de classe média da Vila Mariana.

Hoje ele mora no Ipiranga. Depois de trabalhar com jovens infratores na Fundação Casa, vive do salário de professor da rede pública, vende uma ou outra pintura de sua autoria e às vezes dá uma oficina de arte. Com desconto na folha, ganharia R$ 2,3 mil por mês – ganharia, pois teve de tirar uma licença médica não remunerada, o que reduziu o rendimento a R$ 1,3 mil. O motivo foi uma depressão. “Comecei com uma crise de ansiedade quando trabalhava na Fundação Casa, juntando com essa coisa toda da rotina do brasileiro, pegar ônibus cheio, ver que as coisas não funcionam. Você sabe de sua formação, seu potencial, e quando chega lá é o descalabro. Já vi de tudo em uma escola pública. E na Fundação Casa, vi o lixo humano, aluno sendo espancado e tudo mais.”

“Sou aquele preto que não pode errar”, cantarola Naercio Menezes Filho, professor titular do Insper na cátedra Ruth Cardoso. O verso é dos Racionais MC’s. “Ouço muito Racionais, mudou minha forma de pensar. Essa música diz que, se você nasce em uma família mais favorecida, pode falhar e tentar de novo. Mas, se nascer em uma família pobre, terá de superar obstáculos a todo momento. Desde a pouca atenção que os pais podem dar para você, até frequentar escolas ruins, ter professores que não acreditam que você vai dar certo, sofrer discriminação racial em todos os lugares da cidade.”

Menezes conta sobre a faxineira que trabalha em sua casa. Ela, que se esforça para pertencer à nova classe C, tem um filho de 15 anos que recentemente tentou roubar uma lotérica. Foi pego, levado para a Fundação Casa, chorou, arrependeu-se. “Então o delegado disse a ela: ‘Mãe, não o abandone, porque alguns é possível recuperar'”, diz, emocionado.

“Minha mãe só viajou de avião para outro Estado depois dos 50 anos; eu, com 25; e a minha filha, com 8 meses”, diz a empreendedora Adriana Barbosa, criadora da Feira Preta

Para o professor do Insper, o boom econômico dos anos 2000 trouxe certo alívio para os mais pobres. Mas agora, com o desemprego que atinge especialmente os jovens, o cenário volta a ser preocupante. Segundo ele, estudos econométricos mostram que os jovens egressos da escola em momento de crise ganharão menos a vida toda e têm muito mais probabilidade de entrar na criminalidade, em comparação com a geração que foi para o mercado de trabalho em uma época de crescimento. “É o exemplo desse menino [filho da faxineira]. Não tem emprego, não tem nada.”

Embora André Raimundo tenha tido a sorte de entrar no mercado de trabalho no período da alta e usufruído das políticas sociais, o artista vê no Brasil um retrocesso. “Sempre digo que o Estado contra o povo é uma instituição brasileira. Mas, agora, sinto que o projeto de social-democracia e um mínimo de liberalismo foram para o espaço. Sobrou o porão do Dops. É um tal que tem que atirar, matar, bater em homossexual, governador atirando do helicóptero e por aí vai”, afirma.

Isso remete a uma fala do sociólogo Jessé de Souza, professor da Universidade Federal do ABC, para quem a baixa classe média é aquela que, para se proteger, tem a necessidade de se distinguir daquele que é muito pobre. “O pobre no Brasil é exposto à violência policial e pode ser surpreendido com um PM chutando a porta de sua casa.” Diante da estagnação econômica, o que sobra como perspectiva para pessoas como André? Seu plano é aliar as aulas na rede pública, que garantem um fluxo de renda pequeno, mas estável, com um projeto autônomo de oficinas artísticas para oferecer a empresas e institutos privados.

Buscar sustentação nos pilares do Estado e do setor privado ao mesmo tempo é justamente o que, segundo Marcelo Neri, mais bem representa a ideia de nova classe média, expressão que cunhou. Para ele, o grande papel da classe média é fazer a ponte entre as políticas de Estado e o empreendedorismo. “A beleza da nova classe média foi combinar o crescimento econômico do setor privado com a redução de desigualdade social por meio de políticas públicas. Era o caminho do meio, indicando uma visão mais integrada de país.”

Se o acesso à educação foi capaz de transformar histórias pessoais, Neri faz um contraponto em relação aos ganhos para a economia como um todo, à produtividade e à empregabilidade. Para ele, a educação superior no Brasil tem o mérito de dar aos alunos uma visão crítica do mundo e desenvolver o espírito de cidadania, mas ainda peca ao atender às necessidades do mercado de trabalho. Para ele, há uma aspiração ao diploma de bacharel – que é uma das formas de a classe média se distinguir do proletariado -, quando se devia também valorizar a formação técnica, capaz de atender de forma mais pragmática ao crescimento econômico, como ocorre em países europeus.

“A educação avançou e a expectativa de vida deu um salto gigantesco – a cada três anos, aumentou em um a longevidade. Mas a produtividade não cresceu, ou seja, faltou agenda econômica”, afirma o professor da FGV. Essa agenda teria sido necessária para dar sustentabilidade ao crescimento que vinha vindo. “Hoje, os dois grandes problemas econômicos do Brasil são o fiscal e a falta de produtividade. Ou seja, não se fez o trabalho completo [nas políticas de crescimento e inclusão]. E não se fez a reforma da Previdência, ao mesmo tempo em que a expectativa de vida aumentou.”

“Foi uma bolha que acabou”, diz Menezes. “Ocorreram muitos erros de alocação dos investimentos no governo Dilma. É o que se chama de ineficiência alocativa.” Ou seja, em vez de uma racionalização dos gastos quando a economia estava desacelerando, o governo elevou o investimento em todas as áreas, muitas vezes com má aplicação dos recursos, sem gerar impacto e nem aumento de produtividade. “Foi uma tentativa de manter um boom artificialmente. Um erro muito sério”, diz.

O tombo do boom para a recessão refletiu-se nas urnas, com a derrota petista e um ressentimento de boa parte da população. “A sensação de orfandade é a característica da classe C de hoje”, afirma Renato Meirelles, do Instituto Locomotiva. “A frase é: ‘Conto comigo, com Deus e com minha família'”, diz, o que ilustra o viés conservador de uma significativa parte da população e do eleitorado brasileiro. Na pesquisa do Locomotiva, quando se pergunta para a classe C quem pode contribuir para melhorar sua vida no próximo ano, “eu/meu esforço” aparece em primeiro lugar, com 65% das respostas, seguido por “Deus/fé/minha igreja” com 49% e “família/meus parentes” com 32%.

Com o diploma da Anhembi Morumbi na mão, mais uma especialização na Escola de Comunicação e Artes da USP, Adriana Barbosa já sabia que contava com ela mesma e o próprio esforço. Além disso, soube capturar o espírito do momento, com o florescimento de movimentos afirmativos e identitários das minorias. Naqueles anos, foi aprovada a lei que tornou obrigatório o ensino da cultura negra e indígena nas escolas. O tema da igualdade racial ganhou status de ministério. A então Gessy Lever [atual Unilever] tinha lançado um sabonete para pele negra. A estética negra começava, enfim, a ser cultuada.

“A gente precisou voltar ao nível básico de buscar a sobrevivência”, diz o professor, escritor e músico Carlos André, pai de dois filhos pequenos, moradores de Diadema

Nesse contexto, Adriana não só aprendeu a empreender como foi bem-sucedida ao criar a Feira Preta, plataforma que reúne arte, mostra de filmes, empreendedorismo e debates com palestrantes internacionais e shows musicais. A última edição teve Elza Soares, Fundo de Quintal e Sandra de Sá. O conhecimento acadêmico que acumulou na faculdade foi turbinado por processos de aceleração e incubação voltada a negócios de impacto social. Recentemente, Adriana foi incluída entre os cem afrodescendentes com menos de 40 anos mais influentes do mundo, ao lado de personalidades como Usain Bolt, Rihanna e Beyoncé.

Ela havia sido a primeira na família a cursar universidade, a primeira a ser pós-graduada, a primeira a viajar para outro país. “Minha mãe só viajou de avião para outro Estado depois dos 50 anos; eu, com 25; e a minha filha, com 8 meses. Mas ter a minha filha morando comigo é minha maior conquista.” Parece banal, mas não em seu histórico familiar, no qual mães e filhas sempre foram separadas umas das outras porque as mães tinham que morar na casa dos patrões.

Mesmo tendo a oportunidade de trabalhar em uma multinacional com carteira assinada, Adriana preferiu o negócio próprio. “No meu negócio, estou dentro da minha própria história”, afirma. “Já passei casos de racismo no ambiente corporativo, mesmo naquelas que falam do tema da diversidade. Isso mina meu processo psicológico. Prefiro trabalhar para mim mesma, sem ter de passar por humilhação”, diz. Ela não está sozinha. “Segundo estudo que a gente [Feira Preta] fez com o Locomotiva ano passado, o negro prefere não ser empregado no mercado corporativo porque deseja empreender. Hoje, mais de 50% da categoria de MEI [micro empreendedor individual] é formada pela população negra.” Nesse caldo está o que Adriana chama de empreendedorismo da base para a base, com produtos e serviços ofertados e consumidos pela base da pirâmide, para atender demandas específicas dessa população – um mercado, segundo ela, que grandes empresas têm ignorado.

Por achar que tinha a pele clara demais, Dayanne Silva Pego não reivindicou cota ao prestar vestibular. “Minha avó era negra, mas pensei que, quando me vissem, iam achar que eu estava tentando me aproveitar da situação.” Depois, pensou em largar os estudos, pois era babá de duas crianças, chegava da faculdade à 1h da madrugada e saía às 4h da manhã. Praticamente não descansava. Os patrões pediram que continuasse a estudar e flexibilizaram o horário de trabalho.

Ela se formou, então, em pedagogia pela Universidade Mogi das Cruzes, também estimulada por uma bolsa do Fies, obtida com a boa pontuação no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A formatura foi com emoção: no ano da conclusão do curso, ela, que já tinha uma filha, ficou grávida de gêmeas, com gestação de alto risco. As meninas nasceram prematuras e ainda vieram a inspirar muitos cuidados nos primeiros anos.

Mas Dayanne e o marido, jardineiro, conseguiram driblar os problemas com esforço e planejamento dos gastos. Trabalharam como caseiros, passaram a cozinhar para fora e fazer eventos em fins de semana. E ela conquistou uma vaga em uma escola de pedagogia Waldorf – tema de seu trabalho de conclusão de curso.

“Deixo de gastar e fazer viagens porque não sei se o dinheiro vai faltar. Pago aluguel, né? Prefiro deixar guardado quando sobra. Gosto muito de cinema, mas é caro. Então assisto a Netflix.” O planejamento financeiro trouxe resultado: a família, com renda mensal de R$ 8 mil, já comprou um carro e um terreno na cidade de Paulínia (SP), onde pretende construir a casa própria. “Tudo isso conseguimos depois de 2010.”

Mas o que virá agora, se for confirmado o cenário de estagnação econômica? “Estruturalmente, o nível de produtividade no Brasil está estagnado há 30 anos”, responde Menezes. “Para resolver isso de forma sustentável, o país teria que investir nos jovens pobres.”

Além da reforma da Previdência, pauta prioritária do governo de Jair Bolsonaro (PSL), ele defende a tributária, para reduzir a taxa sobre o consumo – o que atinge essencialmente as classes baixas -, e colocar sobre a renda. “É preciso aumentar impostos sobre os mais ricos, sobre herança e dividendos, investindo esse dinheiro nos mais pobres, a fim de igualar as oportunidades. Do contrário, o Brasil vira uma sociedade extrativista, como escreveram Daron Acemoglu e James Robinson, no fantástico livro ‘Por Que as Nações Fracassam’.”

Segundo Menezes, o livro descreve um país como o Brasil: elites estabelecidas no setor público e no privado que recebem favores e bloqueiam o surgimento de novas empresas com novas ideias, enquanto os serviços públicos são de péssima qualidade. “É uma engrenagem feita para reproduzir desigualdade. Sem mudar isso, o Brasil continuará alternando períodos de maré de cheia e maré alta. Quando a maré sobe, as pessoas ficam felizes com cabeleireiro e iogurte. Mas aí a onda baixa e elas voltam para trás. Para algo sustentado, precisaria da educação de qualidade, que não existe hoje.”

No WhatsApp do professor Carlos André, a mensagem de seu perfil vem como um ensinamento: “Esta luta não se perde, pois ela nunca termina”.

Fonte: Valor Online

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