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Teremos que inventar um outro modo de fazer política

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Prestes a completar 62 anos, o escritor moçambicano Mia Couto é uma das poucas pessoas no mundo capaz de juntar com beleza e propriedade assuntos que vão da medicina à ecologia, da biologia à poesia, da prosa à política. Reconhecido internacionalmente pela qualidade de sua literatura, Couto divide seu tempo entre os livros, o estudo dos ecossistemas, as responsabilidades como consultor ambiental e uma imensa curiosidade sobre como tudo isso, mais o ser humano, está conectado. “Confirmei na ciência o que suspeitava como poeta: a certeza de um parentesco perdido com o mundo natural, seja ele tido como vivo ou inorgânico. Não imaginamos, nós seres humanos, o quanto somos feitos de material não humano”, disse nesta entrevista à ISTOÉ. Na semana passada, Couto esteve no Brasil para participar do Brain Congress 2017, evento que reuniu alguns dos principais nomes da neurociência mundial.

Como a neurociência ajuda a explicar o ser humano?

O cérebro é tido como a obra-prima de Deus (ou da Natureza para os que preferem outra explicação). E, no entanto, sabemos ainda pouco do seu funcionamento. A neurociência está dando respostas a um mundo de indagações, está sugerindo os diversos modos de intervenção do cérebro e de todo o sistema nervoso. Mas não creio que os neurocientistas pensem que vão explicar o “ser humano”.

 

Por quê?

Essa expectativa é criada a partir de fora de uma ciência que conhece bem os seus limites. E aqui pode estar uma questão séria que são as expectativas sobre o que podemos a curto prazo esperar destas investigações. Existe uma tentação redutora de ver no cérebro uma máquina que “funciona” por via de engenhos e mecanismos estruturais. Esperam-se respostas simples, milagres, receitas de aplicação imediata. Mas o cérebro, ainda que use mecanismos, atua de forma orgânica, sistêmica e as nossas funções cognitivas integram outros sistemas como o endócrino e o imunológico, integram o corpo todo. Num certo sentido, nosso corpo funciona como produtor de conhecimento de si mesmo e dos outros.

O sr. cogitou ser psiquiatra e chegou a cursar Medicina. Como entende as doenças mentais?

Estudei Medicina mas nunca acabei o curso. Na época, surgiram correntes como a da antipsiquiatria que contestavam a ideia de normalidade mental e, sobretudo, se opunham aos tratamentos de reclusão e de violência. Mas não tenho competência para falar das doenças mentais. A única coisa que posso dizer é que me apraz muito os avanços que fizemos em relação à definição dos padrões de “normalidade”.

 

Que tipo de progressos?

Ainda há pouco tempo era comum pensar a homossexualidade como uma enfermidade e no prazer sexual da mulher como uma aberração histérica a ser controlada. Porém, ainda persiste uma preocupação normalizadora nas escolas e uma certa pressa de classificar comportamentos de crianças como casos clínicos. Às vezes, pergunto-me se um poeta como Fernando Pessoa não teria sido tomado como um desses casos clínicos e entregue a uma terapêutica que lhe daria um estatuto de “normalidade” mas que lhe roubaria a sua veia poética.

Há exagero no uso de medicações psiquiátricas?

Existe uma tendência de tornar casos “clínicos” as mais diversas situações. A gravidez é um exemplo. Uma coisa é o direito que as mulheres conquistaram de terem um acompanhamento da sua condição. Outro caso é a construção de uma fragilidade que roça a doença e que convida à administração de medicamentos nem sempre justificados. Há uma pujante indústria farmacêutica que vive dessa conversão de precauções naturais num sentimento generalizado de medo e de insegurança.

 

Quais seus principais interesses como cientista?

Sou biólogo e ecologista. O que me fascina é a fronteira entre a descoberta científica e a margem de mistério que sempre subsiste. Mas sobretudo a Biologia me ajudou a repensar-me como pessoa solidária e de identidades partilhadas. A Biologia ensinou-me a entender outras linguagens, ensinou-me a fala das árvores, a fala dos que não falam. Resgatei uma intimidade perdida com criaturas que parecem muito distantes de nós. Hoje em nenhum lugar me sinto uma criatura solitária. Com ela entendi a vida como uma história, uma narrativa perpétua de que somos apenas uma pequena parte. Mais do que tudo ela me trouxe a saúde de pensar que faço parte de uma epopeia partilhada por milhões de criaturas, e nessa antiga saga não existe nunca um ator principal.

 

O sr. afirmou uma vez que os cientistas estão perdendo o desafio de ter dúvidas. Quais são as suas?

Mais do que dúvidas, tenho receios. Penso que aos poucos a ecologia tenha sido recuperada e domesticada. A ecologia oferecia uma visão inovadora e capaz de questionar o homem como centro e proprietário do patrimônio natural. Hoje generalizou-se uma terminologia simplificada que confirma esse lugar de pretensos administradores dos patrimônios naturais que curiosamente são designados por “recursos”. As próprias pessoas são designadas por “recursos humanos”. O termo “ecológico” passou a ser uma etiqueta de marketing. Há sabonetes ecológicos, palitos ecológicos. Não tarda que haja armamento ecológico.

 

Que consequência isso pode ter?

As questões ambientais foram apartadas e autonomizadas. Sugere-se que os biólogos sejam espécies de fiéis de armazém no controle desses recursos. Sugere-se que os ecologistas devam ocupar-se de espécies e hábitats em extinção. Que fiquem pelas questões “ambientais”. Mas os problemas da falta do uso e da posse da terra, da água e da fome são também ambientais.

 

De que maneira a ciência ajuda na sua obra literária e vice-versa?

Confirmei na ciência o que suspeitava como poeta: a certeza de um parentesco perdido com o mundo natural, seja ele tido como vivo ou inorgânico. Não imaginamos, nós seres humanos, o quanto somos feitos de material não humano. E mesmo nesse lugar sagrado onde se acreditava estar registado o nosso pedigree distinto de todas as outras espécies, mesmo no nosso genoma mora a vida inteira.

 

O que o trabalho como consultor ambiental lhe ensina?

O discurso da preservação é infelizmente necessário. Mas o assunto verdadeiro não é de preservação mas do uso correto da natureza. O desafio é terminar com uma economia predadora e não apenas de corrigir os seus excessos. É importante educar as pessoas sobre o bom uso da água e da energia e sobre os deveres de limpar e manter limpo. Mas os grandes causadores do desastre global a que assistimos não são as pessoas comuns. São grandes indústrias, grandes interesses econômicos que não alterarão a sua atitude por causa de campanhas de sensibilização.

 

O sr. tem atuação política importante e vínculo expressivo com o Brasil. De que forma enxerga o que está acontecendo no País?

Não sou brasileiro e seria uma pretensão opinar sobre assuntos que são dos brasileiros. A única coisa que posso dizer tem a ver com o mundo em geral: espera-se da política uma ética, um sentido de missão e de entrega aos outros. Essa conduta ética tornou-se no mundo todo uma exceção. Talvez seja necessário falar menos dos políticos para nos preocuparmos mais com a política. Não aquela que nos é dada a ver pelas mídias mais poderosas que se tornaram hegemônicas. Teremos todos nós que inventar um outro modo de fazer política. Qual será esse modo? Não sei. Mas este sistema que se mundializou não serve.

 

Uma marca de seu estilo é a criação de neologismos, caso de “interinvenções”. As palavras que existem na língua portuguesa já não bastam para expressar o que se quer?

Os idiomas são entidades vivas e raramente são os escritores que criam mudanças que se tornam registro corrente. São as pessoas comuns. Não podemos abdicar do direito (e sobretudo do prazer) de sermos co-produtores desse corpo social. Não se trata de uma questão literária. Mas da possibilidade de ver no idioma um modo de assumirmos uma identidade solidária e coletiva e em permanente construção.

Qual sua palavra favorita (inventada ou existente) e o que ela tem de especial?

Um dia um desconhecido num aeroporto em Moçambique abordou-me para me dizer que queria oferecer uma palavra. Estranhei mas ele explicou-se: era um engenheiro de obras e num certa ocasião teve que chamar a atenção a um operário sobre algo que não estava bem feito. E o homem respondeu: esta é uma coisa “improvisória”. Este termo é genial. Porque reúne muito do que somos em Moçambique (e possivelmente no Brasil): improvisamos na lógica do provisório. Numa única palavra se exprime um modo de uma cultura se dizer a si mesma. Esta palavra tem mérito para ficar no idioma.

 

Algum escritor brasileiro o impressiona acima dos demais?

“Acima” é uma posição hierárquica difícil de estabelecer em literatura. Mas continuo a pensar que na poesia o meu grande mestre é João Cabral de Mello Neto. E na prosa é João Guimarães Rosa.

 

Um de seus livros se chama “E se Obama fosse africano?”. Você por acaso o imaginou como seria se ele fosse brasileiro?
Colocaria a pergunta ao inverso: vocês, como brasileiros atentos à realidade do seu país, acham que seria provável que o Brasil escolhesse hoje um presidente que não fosse de raça branca?

 

Embora seja conhecido como um “escritor da terra”, tanto por ser biólogo quanto por explorar temas ligados à natureza, há em sua obra um certo ar fantástico, até surrealista. Como conduzir o leitor entre o real e o imaginário sem confundi-lo?

Talvez o leitor precise mesmo de ficar confuso, de perder o pé e ser convidado a procurar um novo chão. Se a obra de arte não fizer isso ela não cumpre a sua função de nos conduzir a uma viagem, a saltar fronteiras e a desobedecer certezas. E talvez seja necessário questionar essa construção de literatura do “mágico” e do “fantástico”. Não existe literatura que não caminhe com um pé no fantástico e outro no real.

Fonte: ISTOÉ

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