Como se sabe, as aquisições de bens e serviços pelo poder público, em regra, são realizadas por meio de expediente administrativo licitatório. E em se tratando de aquisições voltadas ao atendimento de decisões judiciais, a Administração Pública, não raro, depara-se com prazos exíguos, insuficientes para conciliá-lo com a rotina inerente ao atendimento de todos os requisitos objetivos previstos em lei. A fluência de um prazo, determinado por um agente externo do órgão que realiza os procedimentos da contratação, interfere diretamente nos procedimentos preparatórios relacionados, sobretudo, à fase interna da contratação.
Deparando-se o gestor do órgão com a ordem judicial, com prazo definido para seu cumprimento, cabe-lhe primeiramente analisar como efetuará a contratação. Como regra, o certame via licitação impõe-se. Contudo, pela impossibilidade de poder aguardar os trâmites ordinários da licitação pública, pode, excepcionalmente, contratar diretamente (por inexigibilidade ou dispensa), caso existente hipótese permissiva em lei (artigo 37, XXI, CRFB/1988 c/c artigo 74 e75 da Lei 14.133/2021 – NLCC).
A Lei 14.133/2021 ao manter no artigo 75, inciso VIII, a previsão de situação de urgência como hipótese de dispensa da licitação, traz como novidade adicional no artigo 75, IV, ‘m’ ao regime da Lei n. 8.666/1993 a ‘aquisição de medicamentos destinados exclusivamente ao tratamento de doenças raras definidas pelo Ministério da Saúde’. O novo permissivo soma-se as possibilidades do gestor quanto à escolha da forma de contratação na modalidade da dispensa de licitação. Atualmente, a Portaria 199, de 30 de janeiro de 2014, caracteriza como doença rara aquela que afeta até 65 pessoas em cada 100 mil indivíduos, ou seja, 1,3 pessoas para cada 2.000 indivíduos (artigo 3°).
Peculiariedades nas compras públicas relacionadas à saúde
A novel legislação traz ao gerente da contratação direta uma novidade não prevista expressamente no âmbito da Lei 8.666/1993, embora adotada como prática administrativa. Para tanto, a referida lei passou a prescrever um procedimento próprio (artigo 72 da NLCC) para as contratações diretas em contraposição à ausência de indicativos mais concretos descritos na Lei 8.666/1993.
E em se tratando de compras institucionais relacionadas a insumos de saúde, os novos procedimentos devem observar as particularidades inerentes. Nestes casos, o planejamento da aquisição – notadamente quanto a justificativa de preço – possui complexidade adicional, que exige do gestor a aplicação de uma farta regulamentação (normativa e jurisprudencial de compras) atinente a este tipo de mercado.
Primeiramente, deve-se, quando houver, preferir a aquisição do medicamento genérico sobre os demais em condições de igualdade de preço nas aquisições no âmbito do SUS, como determina o artigo 3º, §2º, Lei 9.787/1999. Em seguida, é necessário estimar o preço de referência do item de saúde objeto da contratação. Em se tratando de medicamentos, a Lei 10.742/2003 institui regulação econômica deste mercado. Criou-se a Câmara de Regulamentação do Mercado de Medicamentos (CMED), órgão de natureza interministerial, que define as margens de comercialização de medicamentos no país, com base em fórmulas pré-estabelecidos (artigo 6º da Lei 10.742/2003).
Em uma realidade de constantes gastos e orçamentos limitados, a CMED, por meio da Resolução n. 4, de 18 de dezembro de 2006, normatizou um instrumento chamado Coeficiente de Adequação de Preços (CAP) para maior eficiência aos recursos empregados em saúde. O CAP é um desconto mínimo obrigatório para compras públicas de medicamentos em duas situações:
1) aquisição de medicamentos constantes de lista sujeitos ao CAP; 2) aquisição de qualquer medicamento por força de decisão judicial (grifo nosso). A aplicação do CAP nas aquisições oriundas de determinação judicial justifica-se para evitar que o mercado se aproveite do fato da urgente necessidade e da fragilidade do gestor público, para impor preços exorbitantes, acima do teto do preço fábrica. O desconto do CAP é atualizado anualmente pela CMED2.
Com isso, a aplicação do CAP sobre o Preço de Fábrica (PF) dá origem ao Preço Máximo de Venda ao Governo (PMVG), ou seja, o teto a ser pago pelos órgãos governamentais quando efetua a aquisição de medicamentos. Caso o fornecedor recuse-se a aplicar o desconto do CAP, deve o gestor comunicar o fato a CMED e ao Ministério Público, demonstrando as razões pelas quais a aquisição não foi realizada com base no PMGV, sob pena de sua responsabilidade pela contratação antieconômica.
É de ser observado, ainda, se o fármaco objeto da aquisição está listado nos Convênios 87/2002 e 54/2009, ambos do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), com isenção do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para as compras administrativas de todas as esferas. Planilhas disponibilizadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informam se o produto é submetido ao CAP e/ou isento da incidência de ICMS.
A busca pelo preço de referência do medicamento objeto da aquisição, todavia, não se finaliza na observância do PMVG. Deve o gestor também cotejar os preços praticados em outras contratações públicas ou em atas de registro de preço, realizando ampla pesquisa de preços para comparar o PMVG com a realidade do mercado. Neste aspecto, o controle externo exercido pelos tribunais de contas recomenda como parâmetro para pesquisa do referencial de preços utilizar também a consulta ao Banco de Preços em Saúde (BPS), ferramenta criada em 1998 pelo Ministério da Saúde, cujo envio das informações para alimentação do banco de dados do sistema tornou-se obrigatória por força da Resolução 18/2017 da Comissão Intergestores Tripartite (CIT). Por meio do BPS é possível consultar os preços pagos, em âmbito nacional, por medicamentos e produtos da área da saúde, adquiridos por instituições públicas e privadas. Pesquisa mercadológica com a consulta a tabelas de referência do comércio varejista também são convenientes para a estimativa da despesa e consequente justificação do preço.
Efetuada a cotação com os principais fornecedores do mercado, comparando com os preços oriundos das diversas fontes citadas, poderá obter, a partir de uma cesta de preços aceitáveis, o valor de referência para a aquisição a balizar a negociação com eventuais fornecedores. Saliente-se que, mesmo em se tratando de contratação direta, não se dispensa a vantajosidade da proposta que melhor atenda aos interesses públicos envolvidos.
Como se vê, o procedimento necessário guarda relativa complexidade. A prática rotineiramente entendida como a suficiente exigência da apresentação de três orçamentos distintos, não é vista com bons olhos pelos órgãos de controle de contas. Os tribunais de contas a entendem inadequada como meio apto de obter a cotação real para a formação dos preços para compras institucionais, como pode ser observado da leitura do Acórdão TCU 299/2011- Plenário.
O artigo 23, §1º, da Lei 14.133/2021, inclusive, e de forma mais detalhada que no regime da Lei 8.666/1993, elenca uma multiplicidade de fontes de consulta na busca pelo melhor preço. Com o intuito de evitar a deficiência na pesquisa de preços que ocasione riscos à contratação, tal como o sobrepreço na aquisição, o dispositivo ressalta aos agentes a pesquisa de dados em bancos públicos de informação, sem prejuízo de outras medidas e de os entes da federação também definirem outros sistemas para consultas. O Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) é uma funcionalidade criada para reunir diversos mecanismos de pesquisas sobre contratações públicas em sítio eletrônico oficial, entre elas painel para consulta de preços, banco de preços em saúde e acesso à base nacional de notas fiscais eletrônicas. O inciso IV deste dispositivo também permite a pesquisa de preços com três fornecedores, condicionado a justificativa de escolha destes e que os orçamentos não sejam superiores a seis meses da divulgação do edital.
É sempre recomendável, portanto, a consulta a diversas fontes de pesquisa de preços. Inclusive, o artigo 23, §4º, NLL, traz inovador ônus ao contratado no sentido de que ele apresente notas fiscais emitidas para outros contratantes no período de até um ano anterior à data da contratação pela Administração, ou por outro meio idôneo, que demonstre a conformidade do preço em relação a outras contratações ocorridas.
Estas informações de ordem técnica, como visto, são complexas e relativas apenas a um dos itens de observação obrigatória pelo gestor ao planejar uma contratação. Embora se tenha a percepção geral de que a contratação direta pode ser mais célere, como visto, exige ainda maiores cuidados pelo gestor a fim de não incidir em condutas que possam ocasionar-lhe alguma sanção no rígido arcabouço normativo relativo às contratações institucionais.
É primordial, assim, uma melhor comunicação interinstitucional entre o Estado- Executivo e o Estado-Juiz. Na linha do expõe a LINDB (Lei 13.655, de 25 de abril de 2018), as dificuldades práticas do gestor relacionadas ao iter procedimental a ser seguido, agora legalizados na novel Lei de Licitações e Contratos, devem ser de conhecimento, sopesadas e avaliadas do Poder Judiciário ao impor prazos curtos para o cumprimento de ordens judiciais, principalmente aquelas que envolvam como objetos insumos de saúde relacionados a itens não incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS), os quais não fazem parte da rotina ordinária de aquisições da Administração.
Fonte: Jota