Lavar as mãos, passar álcool gel, usar máscara e ficar longe de aglomerações fazem parte do mantra diário contra a Covid-19. Esses hábitos, porém, além de evitarem o contato com o novo coronavírus, têm limitado nossa aquisição de germes “do bem”. Após quase um ano de pandemia, cientistas já se perguntam: estamos ficando limpos demais?
Veja também: ‘Vacina de vento’: saiba como ter certeza de que foi imunizado
A questão é levantada principalmente pelos estudiosos da microbiota humana, nome que se dá ao conjunto de microrganismos que habitam o corpo. Essa população invisível aos olhos é composta principalmente de bactérias, e também por vírus e fungos, entre outros moradores. Cada parte do organismo tem o seu microbioma, como também é chamado, sendo o do intestino o mais rico e o mais importante para manter a saúde em dia.
Siga nosso Instagram
Esses “habitantes” são ganhos e perdidos graças às experiências na vida, desde a barriga da mãe. O local de moradia, o clima, a alimentação, até o sono, interferem.
Tudo que rodeia um indivíduo determina a quantidade, a qualidade e o equilíbrio dessa população. Assim, a vida restrita e esterilizada da quarentena pode representar um ponto de inflexão para a microbiota, destacam os pesquisadores B. Brett Finlay, da Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá), e Tamara Giles-Vernick, do Instituto Pasteur (França), em um artigo recém-publicado na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).
— Ao adotar práticas de higiene, você afeta os micróbios, bons e maus. Presumo que nossas atividades modificadas [pela pandemia] afetam muito os micróbios. O uso de máscaras influenciará os micróbios respiratórios. A limpeza intensa das mãos afetará os micróbios da pele. E a mudança na dieta, como comer mais pão feito em casa, modificará os do intestino. Deveríamos pensar nas consequências de nossas ações — diz Finlay.
Ironicamente, as práticas de higiene intensificadas pela Covid-19 podem acabar prejudicando a capacidade do indivíduo de enfrentar outras doenças mais tarde. Um microbioma saudável, explica Finlay, não é capaz por si só de prevenir doenças infecciosas, mas ajuda a superá-las.
Giles-Vernick, que assina o trabalho com Finlay e colegas de outros países, como Alemanha, Israel e EUA, destaca que esse efeito colateral da pandemia ainda não ganhou a atenção devida nas políticas públicas. Em um cenário em que desrespeitar as recomendações de combate à doença é inviável, algumas medidas poderiam minimizar os impactos na microbiota e, dessa maneira, na perda de saúde da população.
— Os governos não estão rastreando o dano potencial ou as consequências de longo prazo para o microbioma. Estão mais focados no controle da transmissão e no cuidado de quem está doente — avalia Giles-Vernick.
Os especialistas dizem que os líderes deveriam pensar em como proporcionar segurança alimentar, contato com ambientes de micróbios saudáveis (como espaços ao ar livre onde é possível estar perto da natureza, mas longe de outras pessoas, mantendo o distanciamento) e prevenção do uso indevido de antibióticos (que causam a morte de parte da microbiota se ingeridos).
O microbioma de quem enfrentou a Covid-19 também pode sofrer com medicações como a cloroquina e a hidroxicloroquina, incentivadas pelo governo Bolsonaro, ainda que estudos demonstrem que são ineficazes contra a doença. O artigo cita estudos conduzidos na África Ocidental, onde essas drogas são amplamente usadas contra a malária, que indicam consequências negativas para as chamadas bactérias “boas”.
E, como a pandemia não afeta todos de maneira igual, destaca Giles-Vernick, não se podem esquecer aqueles que, pelo contrário, não conseguem manter a higiene por falta de acesso a água limpa e sabão. Os mais pobres tendem a ter uma dieta pior no período atual que, somada à falta de saneamento, pode deixá-los mais sujeitos à baixa diversidade na microbiota.
— [O problema] realmente depende de onde você mora, do status socioeconômico, do sexo, da idade, se você tem uma doença crônica, se você é um migrante ou parte de um grupo racial ou étnico, porque todos esses fatores moldam a maneira com que você vive, se você está em maior risco para as piores consequências da Covid-19. Garantir que os habitantes de ambientes de baixa renda tenham acesso a quantidades saudáveis e suficientes de alimentos, água potável e sabão, por exemplo, é crucial — explica.
Mil dias fundamentais
Os estudos para compreender a dimensão exata dessas mudanças ainda estão em andamento, mas, pelo próprio conhecimento que se tem da formação do microbioma, já é possível apontar para um grupo que desperta maior preocupação: o dos bebês. Isso porque é nessa fase que se dá a formação mais importante da microbiota.
— Nós adquirimos o microbioma nos primeiros anos de vida. Os chamados mil dias, que vão da gestação até os dois anos, decretam o nosso futuro. O microbioma que adquirimos ali vai funcionar como a nossa impressão digital. Ele pode melhorar ou piorar depois, mas tende sempre a voltar para essas características — diz Cristina Targa, presidente do departamento científico de gastroenterologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).
Por isso, os bebês da pandemia, que estão em um ambiente mais controlado, sem contato com outros, sem brincadeiras fora de casa, podem, lá na frente, ser mais propensos a doenças alérgicas e autoimunes. É um padrão que tem sido observado pelos cientistas muito antes da pandemia.
Os hábitos de higiene adotados nas últimas décadas, a vida urbana e o consumo de alimentos com conservantes, entre outros fatores, são vistos como razões para essas enfermidades terem se tornado mais comuns ao longo das gerações. Os cientistas também já identificaram a conexão da “pobreza” da microbiota com a asma, a diabetes e a obesidade.
Mas quando será possível cravar que a “geração Covid” foi mesmo afetada?
— Essas são doenças de longo prazo, ainda vai levar um tempo. Se os micróbios de recém-nascidos são afetados, isso não aparecerá como asma e ganho de peso antes dos três ou até cinco anos de idade. O primeiro passo é descobrirmos se os micróbios foram impactados, e, se for o caso, pensar em modificá-los, para evitar potenciais condições crônicas — diz Finlay.
Enquanto isso, o canadense, que é autor do livro “Let Them Eat Dirt: Saving Your Child from an Oversanitized World” (“Deixe-os comer sujeira: salvando seu filho de um mundo supersanitizado”, em tradução livre), recomenda que as crianças continuem a brincar ao ar livre, explorar objetos e, inevitavelmente, levar à boca algo imprevisto.
— Já se demonstrou que estes atos podem ser benéficos para a saúde. Certamente não vão fazer mal, desde que não aumentem a exposição à Covid-19, como no caso, por exemplo, de um playground lotado.
Fonte: Yahoo Brasil