O relógio acabara de passar das 9h30 da quarta-feira 10 de fevereiro quando o diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antonio Barra Torres, chegou ao terceiro andar do Palácio do Planalto. Ele conseguira um espaço na agenda apertada do presidente Jair Bolsonaro para tratar da manobra articulada pelo líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), para acelerar a aprovação de vacinas no país. Com três envelopes em mãos, o médico e contra-almirante da reserva sabia que teria a difícil tarefa de convencer o chefe do Executivo a apoiar a ciência e barrar a sandice política articulada sem rigor técnico. O tempo era curto. Bolsonaro receberia na sequência o governador em exercício do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, ciceroneado pelo senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ). Além de Barra Torres e do presidente, participaram da reunião Pedro Cesar Sousa, então interino na Secretaria-Geral da Presidência, e o procurador-chefe da Procuradoria Federal junto à Anvisa, Fabrício Oliveira Braga. Barra Torres abriu os envelopes e entregou ao presidente e a dois assessores cópias do texto que havia sido aprovado pelo Senado seis dias antes. Teve o cuidado de usar uma caneta marca-texto para destacar o artigo quinto, que, segundo ele, inviabilizava o trabalho dos técnicos da Anvisa na avaliação dos pedidos de uso emergencial das vacinas contra a Covid-19. Ele foi direto: ‘Se o senhor conceder isso, pode me mandar para casa’, disse, procurando o tom exato para não parecer um pedido de demissão, mas na medida para demonstrar a gravidade da situação.
O pedido surtiu efeito. Na noite da última segunda-feira, 1º de março, às vésperas de terminar o prazo para sanção da medida, o presidente Jair Bolsonaro vetou o trecho da lei destacado por Barra, que determinava aprovação pela Anvisa, em cinco dias, de vacinas com aval no exterior. A lei autoriza o Poder Executivo federal a aderir ao Instrumento de Acesso Global de Vacinas Covid-19, o Covax Facility, e estabelece diretrizes para a imunização da população. Além da dispensa de licitação, contém regras mais flexíveis para os contratos. O texto também determina que a aplicação de vacinas nos brasileiros deverá seguir o previsto no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 do Ministério da Saúde.
A manobra de tentar acelerar a aprovação sem a devida análise técnica caiu. No dia seguinte, o Senado aprovou a Medida Provisória 1.026/21, que autoriza a compra de imunizantes sem licitação e estabelece sete dias úteis para a Anvisa dar um parecer. O prazo considerado ‘razoável’ por Barra Torres foi discutido por ele com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o deputado Pedro Westphalen (PP-RS), relator da medida. O chefe da Anvisa alegou que, ao todo, serão nove dias corridos, o tempo equivalente ao usado pelos técnicos da Anvisa para conceder a autorização do uso emergencial para as vacinas CoronaVac e AstraZeneca, em janeiro.
Desde que assumiu a agência, Barra Torres vive sob pressão. Formado pela Escola de Medicina da Fundação Técnico-Educacional Souza Marques e especializado em cirurgia vascular pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o contra-almirante chegou para assumir uma das cinco diretorias da Anvisa cercado de desconfiança por trazer a credencial de ‘amigo do presidente’, em julho de 2019. Nos últimos meses, tem feito questão de se distanciar de controvérsias políticas envolvendo o presidente. ‘Amigos, amigos, negócios à parte. O pensamento de um não interfere no pensamento de outro’, disse em seu gabinete no prédio da Anvisa, onde recebeu ÉPOCA.
‘Colocando o cargo à disposição, Barra Torres conseguiu convencer Bolsonaro a impedir a homologação de um projeto elaborado pelo centrão para liberar vacinas sem a devida análise dos técnicos da Anvisa‘
Quando entrou no gabinete de Bolsonaro no mês passado, Barra já andava contrariado com a pressão que considerava que a Anvisa vinha sofrendo para liberar vacinas. O líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, deu entrevistas criticando a ‘inércia’ e ‘falta de agilidade’ do órgão para autorizar os imunizantes. Ao jornal O Estado de S. Paulo, em 4 de fevereiro, o parlamentar chegou a dizer que iria ‘enquadrar a Anvisa‘ e que diretores da agência estavam ‘fora da casinha’ e ‘nem aí’ para a pandemia.
Barra Torres reagiu. Na mesma noite, em uma live semanal do presidente, defendeu o trabalho da Anvisa, e Bolsonaro endossou: ‘Eu não interfiro em agência nenhuma. Assim como ninguém, acredito, pressiona a Anvisa. Claro que se o papa vai falar contigo, vamos dar atenção para ele. Agora não pode, porque recebeu o Francisco, que vai ser em nome dos católicos que está acontecendo. Então qualquer pessoa que vá na Anvisa não vai usar o título dele. Da minha parte ninguém’, afirmou o presidente, que ainda passou por uma saia justa quando o contra-almirante o convidou para tomar vacina. ‘Não é pelo fato de A, B ou C ser líder do governo que, com minha tácita aceitação, falará o que bem entender de gente que, eu sou testemunha, está fazendo o possível e o impossível. A disputa política não contamina os técnicos, mas atrapalha, porque ninguém gosta de ouvir que não está ‘nem aí’ para a pandemia, abrindo mão de família, feriado, sábado, domingo e hora de sono’, disse o presidente da Anvisa a ÉPOCA.
A relação entre Barra Torres e o presidente começou quando Bolsonaro ainda era deputado federal. Em 2013, Bolsonaro esteve no Hospital Naval Marcílio Dias, no Rio, para o qual tinha destinado emendas parlamentares. Vice-diretor da unidade na época, coube a Barra Torres recebê-lo. Depois do primeiro encontro, estiveram juntos novamente em cerimônias militares. Em fevereiro de 2019, em outro evento da Marinha, o contra-almirante abordou o presidente comunicando que estava passando à reserva remunerada, oferecendo-se para um posto no governo e reforçando que era médico. ‘Médico? Estou precisando de um médico. Qual cidade você vai querer trabalhar?’, perguntou o presidente. Morador do Rio, Barra Torres respondeu ‘qualquer uma’. Meses depois, veio o convite para a Anvisa. Em dezembro de 2019, passou a atuar como diretor-presidente substituto da agência reguladora e, em outubro de 2020, foi aprovado pelo Senado de modo definitivo para um mandato que segue até dezembro de 2024. A blindagem no posto e o entendimento do funcionamento são apontados como o ponto de virada dele.
‘Ao contrário do que se espera de um militar, o diretor-presidente da Anvisa é tido como uma figura que ‘não centraliza nada’ e que dá carta branca ao corpo técnico da agência, o que tem gerado satisfação entre os servidores’
Barra Torres viu sua popularidade e aceitação mudarem radicalmente entre os servidores da agência. Embora médico, inicialmente recebeu resistência do corpo técnico da Anvisa por não ser reconhecidamente um notável da área. Somou-se a isso o fato de chegar à agência durante a discussão de um tema caro à pauta de costumes tocada pelo presidente Bolsonaro: a possibilidade de liberação da Cannabis para fins medicinais e de autorização de cultivo da droga no país. Os questionamentos que fez a respeito da condução da análise do uso serviram para despertar ainda mais a desconfiança dos servidores.
Pesou também uma malfadada participação em um ato de apoio ao presidente na frente do Planalto no qual protocolos sanitários foram amplamente descumpridos por Bolsonaro. O comportamento caracterizou, na ocasião, o diretor-presidente da agência como uma pessoa que defenderia os interesses do Planalto acima das questões técnicas. A postura ensejou uma nota de repúdio por parte dos servidores da agência, na qual demonstravam ‘consternação’ em relação à atitude de Barra Torres, que justificou que à época ainda não havia clareza sobre as medidas de proteção. Por outro lado, a proximidade com o presidente e o posterior desgaste do então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, fez com ele passasse a ser apontado como um possível substituto.
A maré mudou com os debates sobre vacina, que acabaram exigindo uma postura contundente do diretor-presidente. A análise é que a interrupção dos estudos clínicos da vacina CoronaVac, desenvolvida pelo Instituto Butantan, por decisão da área técnica, em novembro do ano passado, foi um divisor de águas na popularidade de Barra Torres junto aos servidores. A pesquisa foi paralisada após o comunicado de um ‘evento adverso grave’ e retomada 32 horas depois, quando ficou esclarecido que houve uma morte de um voluntário não relacionada aos testes. Na ocasião, Bolsonaro comemorou nas redes sociais a interrupção dos testes: ‘Mais uma que Jair Bolsonaro ganha’. Em mais um capítulo da disputa que já mira as eleições de 2022, o presidente escreveu que o governador de São Paulo, João Doria, ‘queria obrigar a todos os paulistanos a tomar’ a vacina. Na época, apesar das críticas e acusações de ‘politização’ da agência, o diretor-presidente não interferiu na decisão dos pesquisadores da Anvisa e defendeu a instituição contra os ataques.
o uma figura que ‘não centraliza nada’ e que dá carta branca ao corpo técnico da agência, o que tem gerado satisfação entre os servidores. Além do posicionamento durante a crise gerada pela interrupção do estudo do Butantan, o fantasma da desconfiança se afastou ainda mais com a redistribuição de áreas de regulação dentro das diretorias da Anvisa. ‘Acho que a postura durante a pandemia fez com que atitudes de defesa da equipe técnica e da instituição fossem vistas como positivas pelos servidores. No caso da interrupção do estudo, ele deu suporte (aos servidores), defendeu a área técnica, foi um grande marco’, disse a ÉPOCA um servidor antigo da agência que pediu para não ser identificado por temer represálias. ‘As áreas técnicas estão acostumadas com diretores que questionam muito suas decisões, mas ele respeita as medidas tomadas.’
Em 17 de janeiro deste ano, ao discursar durante a reunião da diretoria colegiada que deu a autorização para o uso emergencial para as vacinas CoronaVac/Instituto Butantan e Oxford/AstraZeneca, Barra Torres fez uma defesa enfática do uso das medidas de proteção, contrariadas pelo presidente. ‘O inimigo é um só. A nossa chance, a nossa melhor chance nesta guerra passa, obrigatoriamente, por uma mudança de comportamento social, sem a qual, mesmo com vacinas, a vitória não será alcançada’, disse. O evento, transmitido pela televisão e acompanhado como final de campeonato de futebol, foi visto pelo chefe da Anvisa como a oportunidade para desmentir boatos de que era contra a vacinação. E pediu à população que confiasse nas vacinas certificadas pela Anvisa. ‘Temos procurado fortalecer na população a credibilidade do trabalho na agência e divulgar mensagem contra o negacionismo.’
Outro movimento que conquistou a área técnica ocorreu no início deste mês. Após a saída da diretora Alessandra Bastos, as áreas de atuação de cada uma das cinco diretorias foram redistribuídas, de modo que o processo regulatório das vacinas poderia ficar sob responsabilidade de Barra Torres, caso ele quisesse, mas o diretor-presidente não pediu para si a área, que acabou ficando sob o comando da servidora Meiruze Freitas. O ato foi interpretado como uma sinalização de que Barra Torres não tem interesse de interferir politicamente no processo de autorização de vacinas. O diretor-presidente da Anvisa negou que tenha tido uma mudança de perfil durante o agravamento da pandemia. ‘Seria ridículo mudar em um ano. É claro que a gente evolui, mas, já velho, não seria razoável que em um ano eu tivesse uma mudança radical em minha conduta. Inferiu-se que, pelo fato de ser uma pessoa escolhida pelo presidente, eu poderia representar algum tipo de interesse na Anvisa. O presidente nunca pediu absolutamente nada, nunca exerceu nenhum tipo de pressão. Então, tenho me conduzido de maneira autônoma, independente, como tem de ser uma agência de Estado’, afirmou Barra Torres.
No início da pandemia, Barra Torres foi convidado para ir ao Palácio da Alvorada para uma reunião com a participação de outros ministros. Resolveu ir em sua Harley-Davidson, com a qual costuma andar por Brasília com um grupo de motociclistas. Vestiu o colete cheio de caveiras e colocou o paletó na mochila para ser usado na reunião. Foi barrado pelo segurança, que não acreditou se tratar do chefe da Anvisa. ‘Não sabia como fazer. A sorte é que o general Heleno (ministro do Gabinete de Segurança Institucional) me viu e autorizou minha entrada.’ Ele disse que a amizade com o presidente é bem menor do que se julga. ‘Tem alguns amigos que se vai na casa e abre a geladeira. Nunca estive na casa do presidente no Rio. Estive no Palácio da Alvorada a trabalho e em um almoço, mesmo assim não abri a geladeira.’ Ainda assim, é grande o suficiente a ponto de brincar com a moto que Bolsonaro comprou no ano passado. Dono de três Harley-Davidsons, ele fez piada da Honda modelo NC 750X que o presidente adquiriu. Barra Torres afirmou que um dia o chefe deve comprar uma motocicleta de verdade. ‘É brincadeira, porque o harleiro é um cara doente, acha que moto é só Harley. Não tenho nada contra a Honda, acho ótima’, disse o chefe da Anvisa.
Fonte: Época online
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