Prescritores digitais ameaçam a função de propagandistas
por Márcia Arbache em
A profissão de propagandista da indústria farmacêutica está passando por transformações com rápido avanço das tecnologias digitais. Some-se a isso a mudança no perfil dos médicos e a busca por maior produtividade nos consultórios. A avaliação é de Nelson Mussolini, presidente do Sindusfarma, ao comentar os impactos dos prescritores online, da propaganda virtual e até do uso de avatares no relacionamento entre laboratórios e médicos.
Segundo o executivo, trata-se de um movimento que ultrapassa os limites da indústria farmacêutica, um fenômeno do mundo moderno no qual as pessoas têm menos tempo para tudo, afetando diretamente a dinâmica da propaganda médica. Para Mussolini, as mudanças geracionais ajudam a explicar o processo. “Médicos mais experientes ainda valorizam o contato presencial, enquanto os mais jovens preferem interações digitais, rápidas e objetivas”, assinala.
Atuar como propagandista requer uma abordagem técnica e qualificada (h2)
Pesquisa do IFEPEC ratifica as palavras de Mussolini. O levantamento indicou que para 54% dos médicos de referência consultados, as visitas presenciais acabarão ou serão significativamente reduzidas. Entre os recém-formados, o índice sobe para 67%.

Apesar disso, ele pondera que o chamado “olho no olho” ainda tem grande valor, argumentando que a propaganda pessoal estabelece um tipo de relação que a virtual ainda não conseguiu substituir totalmente. ‘’Mas a propaganda virtual vai crescer com força”, assinala.
Para o presidente da entidade, a principal exigência do médico moderno, porém, é que a abordagem agregue valor. Se o profissional perceber que o objetivo é só vender e não entregar informação relevante, ele inventa uma desculpa e encerra a conversa. “Esse comportamento torna a propaganda virtual ainda mais desafiadora. Ela precisa ser mais técnica e mais qualificada do que a presencial”, admite.
Custos aceleram a migração para o digital
A pressão por produtividade também pesa na decisão dos médicos. O profissional mais novo não quer perder uma consulta para ouvir propaganda. ‘’Ele prefere ouvir no carro ou no celular. Em alguns consultórios, chegam a entrar até dez propagandistas em sequência, o que reduz drasticamente a efetividade das visitas.
Outro fator determinante para a transformação da profissão é o custo da operação. Mussolini explica que é muito caro manter um propagandista em campo com as despesas de carro, combustível, estacionamento, alimentação e material promocional.
Atualmente, há empresas que já migraram parte de suas ações para o ambiente virtual, enquanto outras operam exclusivamente nesse formato, principalmente no segmento de medicamentos de alta complexidade. “Mas isso vai chegar também aos medicamentos mais comuns, aos similares e aos produtos do dia a dia das grandes indústrias brasileiras. É só uma questão de tempo.”
Transformação mais rápida que o esperado
Com 47 anos de atuação na indústria farmacêutica, Mussolini avalia que, paradoxalmente, a propaganda evoluiu pouco ao longo das décadas. “Antes era um papel, depois um material mais elaborado, depois o tablet. Agora, sim, estamos vendo uma mudança estrutural, com a propaganda virtual ganhando espaço”, analisa.
O Sindusfarma ainda não dispõe de dados consolidados sobre o impacto dessa transformação no número de profissionais em campo, mas estuda realizar uma pesquisa no início do próximo ano para mapear o cenário com mais precisão. Embora não acredite em uma substituição imediata da visita presencial, ele é categórico. “Essa transição vai acontecer mais rápido do que os próprios propagandistas e dirigentes de entidades imaginam”.
Visitas presenciais seguem vivas em consultórios
Embora haja convergência com Mussolini em alguns pontos, o consultor André Reis, CEO da Repfarma, aborda a questão sob outro aspecto. Ele sustenta que a visita presencial de representantes da indústria a consultórios médicos segue mais viva do que nunca. Especialista no mercado farmacêutico, ele ressalta que há uma contradição entre o discurso médico e os dados reais. ‘’Nunca se prescreveu tanto medicamento de marca no Brasil’’.
Reis apresentou dados indicando que o mercado farmacêutico nacional saltou de um faturamento de cerca de R$ 154 bilhões para aproximadamente R$ 263,9 bilhões em apenas quatro anos, um crescimento acumulado de 71% no período. “Qual outro setor da economia cresceu nesse ritmo no Brasil?”, questiona.
Medicamentos de marca sustentam varejo farmacêutico
Desse total, mais de 50% das vendas estão concentradas em medicamentos de prescrição (MPXs). E nesse grupo, apenas cerca de 11% correspondem aos genéricos, enquanto os MPXs representam cerca de um terço de todo o faturamento do setor. Já os medicamentos inovadores e patenteados ficam em torno de 8%. “A grande massa de valor da farmácia está nos medicamentos de marca, exatamente aqueles que os propagandistas representam”, destaca Reis.
O consultor observa que o mercado está cada vez mais concentrado em grandes grupos nacionais, como EMS, Eurofarma, Aché e Hypera Pharma, que juntos já respondem por cerca de 35% do mercado total. A estratégia dos líderes, segundo ele, é a “massificação”. Ou seja, lançamentos contínuos de produtos, grande número de marcas para os mesmos princípios ativos e presença intensa de representantes, com o objetivo de criar o hábito prescritivo no médico.
Amostras grátis ainda são moeda estratégica
Para Reis, as amostras grátis, prodigamente distribuídas, continuam sendo uma das principais chaves da relação entre médicos e indústria. Ele sublinha que essas apresentações funcionam quase como um pedágio para abrir a porta do consultório. “O médico também as usa para atender pacientes carentes e projetos sociais. Se tirar as amostras da equação, a visita perde boa parte do apelo”, avalia.
No livro Fundamentos da Propaganda Médica, o consultor classifica as abordagens em dois modelos principais. A visita expositiva é rápida, com pouco diálogo e foco quase exclusivo na entrega de amostras. Já a visita consultiva exige maior preparo técnico, envolve troca de informações e discussão clínica mais aprofundada. “Essa visita de valor nunca vai acabar”, pontua.
A medicina, completa Reis, não é uma ciência pura, é técnica baseada em farmacologia, fisiologia, patologia e anatomia. Ele defende que o representante deveria atuar como um verdadeiro consultor em farmacologia. Para ele, esse papel é ainda mais relevante diante da renovação constante de médicos recém-formados. “Para muitos jovens médicos, diclofenaco e amoxicilina ainda são lançamentos. Alguém precisa explicar como usá-los corretamente’’, reitera.
Relação humana ainda pesa
Além do aspecto técnico, André Reis chama a atenção para o componente humano da visita. Com uma rotina extremamente pesada, o médico recebe o representante e aproveita o momento para respirar. “Há também relações construídas ao longo de décadas, apoio para participação em congressos e eventos científicos e uma rede de confiança que vai além da simples transação comercial’’, avalia.
Apesar do avanço das plataformas digitais e da inteligência artificial, o especialista não acredita no fim da visita médica presencial. “A IA só reflete o que existe na internet. Se a internet estiver cheia de informações ruins, ela vai reproduzir isso. A visita consultiva, de qualidade, continua sendo insubstituível”, finaliza o executivo.