O recall de produtos tem sido pauta de muitas medidas – administrativas e judiciais – direcionadas ao setor regulado, e isso tem despertado a atenção das empresas para adoção de diferentes providências, seja revisando os POPs internos, seja treinando o time para as situações que impliquem potenciais recolhimento, seja revisitando as normas sobre o tema para mitigar riscos de várias naturezas.
Por isso, as atualizações pelas quais passou o tema tem novamente despertado a atenção do setor regulado. Entre essas mudanças, estão: 1) a Portaria nº 618/2019 do Ministério da Justiça e Segurança Pública (“MJSP”); 2) a renovação do acordo de cooperação técnica entre a Secretaria Nacional do Consumidor (“Senacon”) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (“Anvisa“); e 3) as Notas Técnicas nºs 4 e 6, da Senacon, que buscam apresentar razões para a adequada interpretação de dispositivos da Portaria MJSP nº 618/2019.
O novo acordo de cooperação técnica entre Anvisa e Senacon
O primeiro acordo de colaboração técnica celebrado entre Anvisa e Senacon data de 2009, e compreende linhas gerais para a troca de informações entre as duas instituições. Tal acordo, contudo, foi revisto em julho de 2019, com o propósito de ampliar o intercâmbio de informações entre as instituições e estimular ações regulatórias e fiscalizatórias conjuntas. Entre essas ações, destaca-se a que se propõe a realizar melhorarias no atendimento ao consumidor do setor de medicamentos.
O novo acordo parece ser resultado das conclusões apresentadas pelo boletim “Recall em Números – 2019”, preparado pelo MJSP a partir dos dados das campanhas de recall realizadas naquele ano. Segundo o boletim, em 2019, o setor de medicamentos foi o responsável pelo segundo maior número de campanhas de recall promovidas no território nacional, resultado alarmante, a justificar medidas imediatas.
O prazo de 24 horas para comunicar o início das investigações sobre eventual desvio no produto e a antinomia aparente de normas
Em julho de 2019, o MJSP atualizou as regras de recall por meio da Portaria MJSP nº 618/2019. O artigo 2º impõe que o fornecedor de produto que “tomar conhecimento da possibilidade de que tenham sido introduzidos, no mercado de consumo brasileiro, produtos ou serviços que apresentem nocividade ou periculosidade, deverá, no prazo de vinte e quatro horas, comunicar à Secretaria Nacional do Consumidor sobre o início das investigações”.
Pelo texto da atual norma, a comunicação deve ser feita antes de qualquer conclusão sobre a potencial nocividade ou periculosidade do produto, ou seja, apenas diante de uma mera possibilidade. Essa nova abordagem – bastante polêmica – difere daquela que constava na norma anterior (Portaria n° 487/2012), que previa as comunicações às Autoridades apenas quando o fornecedor soubesse efetivamente que havia nocividade ou periculosidade no desvio identificado no produto.
A nova exigência pode ser considerada bastante precipitada, não só em razão do caráter preliminar das investigações, mas também porque desconsidera diferentes níveis de complexidade e risco que envolvem os potenciais desvios. Vale dizer, trata-se de regra geral aplicável a todo e qualquer tipo de produto, dos mais simples aos mais complexos – ou seja, dirige-se a produtos inseridos em cenários regulatórios bastante diferentes, como no caso de brinquedos, veículos, alimentos e medicamentos.
Possíveis antinomias aparentes ficam mais claras no caso de medicamentos. Cite-se, por exemplo, a nova Resolução RDC nº 658/2022, publicada recentemente pela Anvisa, que aborda o tema do recall de medicamentos de forma um pouco diferente. De acordo com essa norma, as autoridades sanitárias devem ser comunicadas sobre o potencial desvio de qualidade no medicamento apenas quando o problema detectado, de fato, demandar recall, o que será concluído apenas após investigação conduzida pela empresa.
Além disso, a norma ainda prevê que a tomada de decisões (onde se inclui a decisão sobre quais serão as comunicações necessárias no caso concreto) dependerá da avaliação sobre o “nível de risco”, além de permitir que outras medidas sejam tomadas pela empresa antes mesmo da comunicação formal, o que revela o cuidado da norma em conferir tratamento diferente a situações que possam apresentam níveis de complexidade ou de risco também diferentes. Ademais, outras regras sobre recall também foram recentemente publicadas pela Anvisa, como a Resolução RDC nº 625/2022 (que trata do recall de medicamentos) e a Resolução RDC nº 655/2022 (que trata do recall de alimentos).
Nesse sentido, as regras da Portaria MJSP nº 618/2019 estabelecem critérios menos flexíveis e desproporcionais para o tema do recall. Justamente em razão do grande debate gerado por essas questões técnicas relevantes, a Senacon decidiu formalizar sua interpretação sobre alguns itens da referida Portaria, o que fez nas Notas Técnicas nºs 4 e 6.
Notas Técnicas nºs 4 e 6 da Senacon
Em 9/1/2020, a Senacon publicou as Notas Técnicas nºs 4 e 6 referentes a dois temas importantes tratados na Portaria MJSP nº 618/2019: 1) a possibilidade da Senacon estabelecer o plano de mídia mais adequado para cada campanha de chamamento, flexibilizando regras para casos menos complexos – Nota nº 4; e 2) a interpretação do artigo 2º da referida Portaria, notadamente sobre o início do prazo de 24 horas para comunicação das investigações à Senacon.
Na Nota Técnica nº 4, a Senacon reforça sua autonomia quanto à possibilidade de escolher quais serão os meios mais adequados e mais eficientes para a comunicação da campanha de recall a ser feita por meio do “Aviso de Risco/Plano de Mídia”. Para isso, a escolha dos meios deverá ser feita considerando-se o caso concreto e analisando-se os critérios de oportunidade e conveniência.
Com isso, segundo a referida Nota Técnica, a Senacon poderá eleger os meios de comunicação de recall, podendo 1) incluir alguns meios não previstos na legislação ou 2) admitir a supressão de meios que se mostrarem inoportunos ou ineficientes no caso concreto. É o fornecedor que deve preparar e apresentar, fundamentadamente, sua solicitação de inclusão ou supressão de determinados meios na comunicação a ser feita ao consumidor.
O “Anexo I”, da Nota Técnica, define quais os parâmetros que devem ser seguidos pela Senacon ao decidir a solicitação apresentada pelo fornecedor quanto aos meios de comunicação. De imediato, exclui a possibilidade de dispensa total de veiculação de Aviso de Risco, assegurando que sejam utilizados meios suficientes para que o consumidor tome conhecimento do recall.
Entre os parâmetros de decisão definidos, estão: 1) o dever dos agentes públicos observarem a rastreabilidade do produto (ou seja, a possibilidade de identificar os consumidores expostos ao risco); 2) a inclusão de todas as informações listadas no artigo 6º da Portaria MJSP nº 618/2019; 3) a quantidade de produtos defeituosos; e 4) o histórico da empresa em campanhas de chamamento e a existência de processos administrativos pela não realização de recall em outras oportunidades. Por fim, o “Anexo I” apresenta uma tabela com esses parâmetros para ser preenchida pelo agente público ao avaliar o pedido de supressão de meios midiáticos.
Portanto, a forma como o fornecedor de produtos conduzirá cada potencial caso de recall será decisiva para os resultados que dele se espera: as ações de comunicação e de recall devem ser proporcionais e corresponder à exata extensão do caso, além de também mitigar riscos de que o fornecedor enfrente outras consequências nas esferas administrativa, civil ou até penal.
Por fim, a Nota Técnica nº 6 apresenta a interpretação dada pela Senacon – com elementos mais esclarecedores – em relação ao teor do já referido artigo 2º da Portaria MJSP nº 618/2019. A Nota propõe que o processo de investigação seja separado em dois momentos:
1) O primeiro momento é quando o fornecedor investiga se o desvio no produto é ou não pontual; é dizer, se a falha ocorreu em “pouquíssimas unidades” ou em “série”. De acordo com a Nota Técnica, esse primeiro momento não deve ser comunicado, pois a Senacon entende tratar-se de um processo interno da empresa que não deve sofrer intervenção do Estado;
2) O segundo momento, porém, é quando se constata que a falha ocorreu em série. Nesse caso, a Senacon deve ser comunicada, iniciando-se o processo de investigação nos termos da Portaria MJSP nº 618/2019.
A despeito da Nota Técnica nº 6 tentar encerrar as discussões sobre a interpretação adequada do art. 2º da referida Portaria, parece-nos que há duas graves falhas em seu propósito:
1) Ao preferir usar as palavras “pouquíssimas quantidades”, a Nota Técnica não define a extensão de seu critério quantitativo para o mesmo lote, ou seja, não esclarece qual parâmetro de quantidade (ou percentual) deve ser considerado pela empresa ao decidir se deve ou não comunicar à Senacon desvio identificado em determinada quantidade de produtos de um mesmo lote; e
2) Deixou-se de considerar, mais uma vez, a utilização dos parâmetros de periculosidade e nocividade para avaliação da necessidade de comunicação do desvio à Senacon. É dizer: mesmo quando constatado desvio em “série”, quando esse desvio não apresentar periculosidade ou nocividade à saúde do consumidor, parece-nos que a comunicação das investigações é bastante discutível (e esta matéria não é esclarecida pela Nota Técnica).
Essas duas notas técnicas demonstram que a Senacon pretende uma atuação mais ativa e colaborativa, mostrando-se sensível a algumas dúvidas exteriorizadas pelo setor regulado e preocupada em reforçar o dever da Administração Pública de cumprir princípios legais e constitucionais que conduzem a uma atuação mais eficiente, razoável, proporcional e que busque oferecer maior segurança jurídica aos temas regulados.
Ainda assim, as empresas inseridas nos diferentes setores regulados seguem enfrentando diariamente o desafio de harmonizar as regras gerais de recall e as regras específicas direcionadas a determinados produtos (como no caso dos medicamentos e alimentos), notadamente para a avaliação dos diferentes níveis de complexidade e risco que envolvem cada potencial desvio. A análise meticulosa de cada situação permite à empresa mitigar riscos e adotar as medidas mais adequadas em cada caso.
Fonte: Consultor Jurídico