Associações e pacientes transplantados estão alarmados com a falta de medicamentos fornecidos pelo Ministério da Saúde que evitam a rejeição de órgãos. Um deles é produzido pelo laboratório do Exército. A reportagem é do Victor Ferreira.
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Lúcio é chefe da equipe de transplantes do hospital Quinta D’Or, no Rio. Já fez mais de 1.200 cirurgias. “Alguns transplantes, se o enxerto parar de funcionar, o paciente morre: os pacientes transplantados de fígado, de coração… A falta do medicamento imunossupressor tem um impacto muito grande na vida desses pacientes que vão perder o enxerto e vão ou morrer ou voltar para a diálise”, afirma Lúcio Pacheco, médico cirurgião.
Os imunossupressores baixam a imunidade do organismo para que o corpo não rejeite o órgão transplantado. Os principais remédios são o tacrolimo, fabricado pela Fiocruz, e o micofenolato de sódio, fabricado pelo Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército – ambos são distribuídos pelo Ministério da Saúde a todos os estados do Brasil. “A princípio, esses dois remédios são tomados a vida inteira após o transplante”, diz Lúcio.
Fora do SUS, esses medicamentos podem custar de R$ 2 a 3 mil por mês. Desde dezembro, há registros de falta desses medicamentos em pelo menos 14 estados e no Distrito Federal, de acordo com a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos.
“A partir do final do ano está havendo um parcelamento dessa entrega, de tal forma que já houve falta de imunossupressores como, por exemplo, o micofenolato, em alguns estados. Outros estados, por exemplo, estão recebendo uma quantidade muito baixa de tacrolimo”, relata José Huygens, presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos.
Oitenta mil pacientes que fazem uso diário desses imunossupressores. Pela primeira vez em 10 anos, Frederico, de Fortaleza, ficou sem tomar um dos remédios. Sem alternativa, compensou, aumentando a dose de outro medicamento, o que não é recomendado.
“No dia 14 de dezembro faltou o micofenolato de sódio e essa falta durou até o final de janeiro de 2021. Eu devo ter passado cerca de 40 dias sem tomar essa medicação”, conta o paciente Frederico Studart Leitão.
No Maranhão, um paciente relata escassez dos medicamentos até hoje e reduziu por conta própria a dose: de quatro para dois comprimidos de micofenolato por dia – o que pode comprometer o transplante de rim que ele fez há três anos.
“É uma sensação de impotência. Você sabe que por causa de um medicamento – 4 comprimidos, 6 comprimidos no caso, 4 micofenolato e 2 tacrolimos -, você corre a possibilidade de voltar pra máquina e fazer uma sessão de hemodiálise de 4 horas, 3 vezes por semana. É uma sensação horrível”, lamenta o paciente Edmilson Carvalho da Silva.
O Jornal Nacional teve acesso a um ofício enviado pelo Ministério da Saúde ao Conselho Nacional de Secretários de Saúde. No documento do dia 18 de dezembro, o ministério admite que a quantidade de micofenolato distribuída permitiu atender 50 dias da programação do 4° trimestre. Ou seja, a medicação durou do começo de outubro até meados de novembro. Por um mês, o remédio não foi distribuído.
Na tarde desta quinta (11), o Conselho Nacional de Secretários de Saúde afirmou, em nota, que a irregularidade na distribuição dos medicamentos atinge todo o Brasil desde o início do 4° trimestre de 2020.
Além da falta de imunossupressores, o Sistema Nacional de Transplantes, que centraliza toda a notificação e distribuição de órgãos no Brasil, está sem coordenação desde 29 de janeiro. A médica Daniela Salomão, ex-coordenadora, foi exonerada pelo ministro Eduardo Pazuello dez dias depois de uma reunião em que mencionou a dificuldade para alertar o ministro sobre a gravidade da falta dos medicamentos.
A reunião da Câmara Técnica Nacional de Transplante de Fígado foi no dia 19 de janeiro. O JN teve acesso ao vídeo. Na conversa, Daniela Salomão ouviu dos médicos que a falta do medicamento era grave.
“Com a necessidade de uma resposta em 24 horas, porque os pacientes estão correndo risco de vida… Pronto, acabou”, disse o médico cirurgião Ben-Hur Ferraz Neto.
“No Ceará, por exemplo, hoje não tem micofenolato, de jeito nenhum, zerou”, alertou José Huygens Garcia, presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgão.
Um dos participantes da reunião afirmou que a exclusividade dos laboratórios da Fiocruz e do Exército na fabricação dos medicamentos dificulta o atendimento da demanda. Daniela Salomão disse que já vinha tentando alertar o ministério sobre a gravidade do assunto.
“Tiraram todas as indústrias farmacêuticas do mercado, não dão conta de produzir, e ficam batendo cabeça. Agora, eu fui falar desse assunto no ministério, você não tem ideia da confusão que foi. Na cabeça do ministério, a Coordenação de Transplante não pode se manifestar sobre medicação. Eu não aguento mais esse negócio de a área técnica não é ouvida”, contou Daniela Samolão. Desde a exoneração de Daniela Salomão, o Sistema Nacional de Transplantes está sem comando.
A demanda do SUS é de 44 milhões de comprimidos de micofenolato de sódio por ano. Em 2019, o Laboratório do Exército produziu e entregou ao Ministério da Saúde 42,9 milhões de comprimidos do medicamento. Em 2020, essa produção caiu para 39,1 milhões – quase 4 milhões a menos.
A falta do remédio no fim de um ano de pandemia chamou atenção da Associação Brasileira de Transplantados. “Eu falo que é paradoxal, porque aí um outro fato aconteceu em paralelo e esse outro fato é essa superoferta de medicamentos do chamado kit de tratamento precoce, como a cloroquina e alguns outros; e aí começou a ter um super estoque, um super abastecimento desses medicamentos, que são também os medicamentos produzidos pelo Laboratório Químico do Exército”, comentou Edson Arakaki, presidente da Associação Brasileira de Transplantados.
O Exército informou que tem 328 mil comprimidos de cloroquina em estoque no laboratório. A fabricação saltou de menos de 100 mil comprimidos por ano para 3,2 milhões em 2020. Enquanto sobra cloroquina, um remédio que não tem eficácia comprovada contra a Covid, faltam medicamentos vitais para os transplantados.
“É uma falta que já se estende em alguns estados por dois ou três meses. Os registros mais graves a gente viu no Maranhão, no Piauí, no Ceará, no Rio Grande do Norte, no Distrito Federal, no Rio Grande do Sul”, relatou Edson Arakaki.
Em nota, o Exército afirmou que não há qualquer relação entre as produções dos medicamentos micofenolato e cloroquina, e que a aquisição de insumos importados foi afetada pela pandemia. O Exército diz ainda que o laboratório é um órgão executor e não é de sua competência decidir sobre ampliação ou redução de medicamentos.
Pacientes transplantados podem levar uma vida normal, desde que tomem os remédios em dia. Quando completou mil transplantes de fígado, o Dr. Lúcio subiu a Pedra da Gávea com um grupo de pacientes para mostrar que era possível.
Por uma dessas coincidências da vida, há três semanas, o Lúcio passou — ele próprio — por um transplante de fígado. Além de ter centenas de pacientes que fazem uso de medicamentos imunossupressores, ele agora também toma diariamente esses comprimidos.
Repórter: “Como é, Lúcio, para você e seus pacientes conviverem com essa insegurança, sem ter certeza se vai ter remédio para o mês seguinte?”
Lúcio: “Até pouco tempo atrás, eu só me preocupava com meus pacientes. Hoje eu estou no meio deles, sou paciente também. Isso é muito estressante; ficar sem essa medicação coloca tudo o que foi feito em risco. O transplante é muito mais do que só uma cirurgia, o transplante é uma cirurgia que depende de um doador e que você não sabe quando vai ter outro”.
O Ministério da Saúde declarou que no primeiro trimestre as entregas do micofenolato de sódio são em duas etapas e que 70% delas ocorreram entre 17 de janeiro e 5 de fevereiro. Quanto ao outro imunossupressor, o tracolimo, o ministério afirmou que o laboratório retomou o fornecimento, com previsão de chegada ainda em fevereiro.
A Fiocruz declarou que está mantendo o cronograma pactuado com o Ministério da Saúde, apesar da dificuldade logística da pandemia.
A Secretaria de Saúde do Maranhão afirmou que as remessas do ministério devem durar dois meses e dez dias, e que iniciou processo de aquisição para evitar o desabastecimento.
A Secretaria de Saúde do Ceará declarou que o micofenolato de sódio chegou no dia 27 de janeiro, com quase um mês de atraso.
A médica Daniela Salomão não quis comentar a exoneração dela.
O Ministério da Saúde afirmou que iniciou um processo de reestruturação da área.
Fonte: G1
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