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Como as consumidoras negras impulsionaram o mercado de beleza brasileiro na última década?

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Costuma-se dizer que o conceito de beleza é subjetivo. Mas será mesmo que estamos livres de lentes e que o entendimento do que é bonito está imune a interferências? Certamente, não. Basta checar as imagens que, por décadas, absorvemos das novelas, dos filmes, das propagandas, das revistas (nós, inclusas) e dos desfiles de moda. Referências que constroem um léxico imagético e interferem, junto de vivências e outros aspectos sociais, no entendimento do que é belo.

‘Ele está nos olhos de quem vê? Não, ele também é uma construção social. E essa arquitetura determina a estética na sociedade em que estamos inseridos – por sua vez, estritamente ocidental e colonialista’, afirma Katiúscia Ribeiro, doutora em filosofia africana.

Sim, isso significa que qualquer fuga do padrão branco-liso-magro-fino é vista com estranhamento. Problema: a recusa vira sintoma, inclusive quando falamos na indústria da beleza. Traços são negligenciados também em termos de serviços e ofertas de produtos. Felizmente, o mercado está em transformação no Brasil, especialmente dos últimos dez anos para cá. O primeiro degrau, talvez, se relacione ao cabelo. O processo de transição capilar, que teve um boom a partir de meados de 2014, fez com que as cacheadas e crespas passassem a abraçar a textura natural – o que foi além da aparência física e se tornou um movimento de resgate à identidade.

‘Começou no Orkut e encontrou espaço no YouTube. Mulheres que já assumiam os fios naturais por resistência ou que tiveram quedas, queimaduras no couro cabeludo depois de tantos procedimentos químicos passaram a buscar outras alternativas, porque o mercado tradicional não estava nem aí para elas. O que aprendiam e dava certo era compartilhado em vídeos e postagens’, conta a influenciadora digital e jornalista Carla Lemos, autora do livro ‘Use a Moda a Seu Favor’ (Record), que viveu e acompanhou de perto a movimentação.

Os experimentos mil eram pautas, e as protagonistas acumulavam seguidoras ávidas por conhecimento empírico. Tal demanda empurrou as marcas de beleza, que começaram a repensar linhas específicas ou até ampliar portfólio. Não dava mais para ignorá-las.

‘Havia uma obsessão antifrizz nos anos 2000. Se você fosse vaidosa, bem-sucedida e cuidasse de si, tinha que alisar o cabelo e deixar os fios no lugar. A gente não se via nem em novelas, porque as personagens cacheadas e crespas não eram quem o público almejava ser’, lembra Carla.

‘A internet foi muito importante ao aumentar o alcance das questões de raça e gênero, mas também dos novos referenciais de beleza”, completa.

A bolha, então, estourou. O discurso focado em ‘domar as madeixas’, finalmente, não era mais tolerado. Fórmulas também precisaram ser revistas. Se as consumidoras queriam volume, os novos finalizadores deveriam entregá-lo.

‘O movimento da transição capilar que a consumidora iniciou fez com que tivéssemos que nos mexer porque atendíamos quase que exclusivamente essa mulher’, explica Kamila Fonseca, diretora de marketing da Salon Line, rótulo com um dos maiores portfólios dedicados aos cachos e crespos do mercado brasileiro, incluindo cuidados para tranças afro.

Teve quem surfou na onda sem mudança real de mentalidade? Sim, mas o saldo ainda é positivo, aponta a jornalista Luanda Vieira. Expert em beleza com passagem por grandes títulos, como a Vogue e esta Glamour, ela acredita que não havia outra saída para quem quisesse se manter relevante.

‘Sempre digo que as empresas mudam no amor ou na dor. Mesmo que não acreditem na causa, sabem que vão deixar de existir se não olharem para mulheres negras. Não ter diversidade e inclusão mexe diretamente no lucro’, aponta. Se antes a prateleira ficaria vazia, hoje encontramos itens customizados para cada necessidade. ‘No passado, não tínhamos nem produtos focados no nosso tipo de cabelo e, hoje, até o xampu pode ser personalizado’, diz Luanda.

Mas não é só de haircare que se faz uma penteadeira decolonial. Em setembro de 2017, Rihanna dava uma pausa nas criações musicais e seguia imersa na Fenty Beauty. O diferencial? A dela era uma das primeiras marcas de beleza a já entrar no mercado com 40 tons de base disponíveis, das mais pálidas ao tom retinto, para além de subtons – essenciais para que a cobertura seja imperceptível e não manche de alaranjado ou acinzentado. A marca chegou a ser apontada pela revista Time como uma das 25 melhores invenções daquele ano. Quase cinco anos depois, também podemos dizer que ela impulsionou toda uma categoria: quem não tinha correu atrás para fazer também. E quem tinha passou a comunicar melhor.

‘Fenty Beauty deu um passo e não tinha como retroceder. As marcas não poderiam olhar para aquilo e seguir inertes, até porque os consumidores entenderam que não precisariam mais passar o perrengue de ficar misturando bases’, analisa Luanda. Carla Lemos acrescenta que a comunicação também foi ponto-chave. ‘Diziam que tons para peles negras não vendiam. Então chegou Riri e virou best-seller. Por quê? Faço o paralelo com uma frase que Beyoncé cita no documentário ‘Beychella’: ‘A gente não pode ser o que a gente não vê’. Como vai vender maquiagem para pele negra, se as pessoas não se enxergam naquele lugar? Rihanna mostrou, com imagens, que nós poderíamos, sim’, reflete.

O mesmo incômodo de uma estrela da música batia na administradora de empresas carioca Rosangela José. Fundadora da marca Negra Rosa Cosméticos, especializada em pele negra, ela e a sócia, Ana Heller, entraram no game para atender uma parcela da população que está longe de ser pequena e invisível – 56,1% dos brasileiros se autodeclaram racializados.

‘Eu, como mulher negra e consumidora, sabia da falta de produtos para nós. Sou do tempo em que os cosméticos nacionais não se importavam se a pigmentação funcionaria na gente’, conta.

O rótulo nasceu em 2016, a princípio com três tons de batons. No ano seguinte, chegaram cinco tons de base, incluindo opções para a pele retinta, que é justamente a que mais tinha dificuldade em comprar. Somam sete variações de base, além de sombras, blush, iluminador, corretivos e batons. Em uma ampliação mais recente, a Negra Rosa também investiu numa linha capilar. ‘As marcas precisam se adaptar. E não foi um movimento que partiu delas, mas uma exigência inicialmente do público’, diz Rosangela.

O mesmo não se pode dizer, entretanto, da seara de cuidados. E não estamos falando de skincare. Considerada uma das especialidades mais ‘brancas’ da medicina, a dermatologia custa para atender peles negras. O problema é primário: há lacunas profundas na própria literatura médica. ‘Quando cheguei a esta especialidade, vi que não havia sequer referências nos livros’, afirma Katleen Conceição, dermatologista especializada em pele negra, que tem Taís Araújo e Lázaro Ramos entre os pacientes célebres.

As mesmas questões foram enfrentadas por Monalisa Nunes, também dermatologista e negra. ‘O que vejo, na prática, é que as pacientes já receberam muitos ‘nãos’ – por exemplo, ouviram que peeling ou depilação a laser não podem ser realizados em pele negra – quando o tratamento era possível. O importante é que o profissional esteja apto e tenha estudado para isso’, diz a médica.

É preciso estar preparado mesmo, porque as questões também são específicas e, assim como pacientes com outros diagnósticos, carecem de soluções. Entre as principais reclamações de quem chega aos consultórios estão as manchas escuras que surgem com facilidade na pele negra em razão da maior produção de melanina.

Junto com as queixas, vem o medo dos tratamentos. ‘É uma pele que exige cuidado mais delicado. Ainda é muito reproduzida a máxima de que, por ter mais colágeno e elastina, a pele negra é mais resistente, mais rígida? Sendo que é o contrário: ela tende a ser mais sensível, pigmentar com maior facilidade, e tem mais chance de queloide’, elucida Monalisa.

Dos procedimentos clínicos aos frascos da farmácia, as peculiaridades devem ser levadas em consideração. Aliás, já nem pega bem propor ‘clareamento’ – ‘branqueamento’, então, nem se fala. Prova disso é que termos assim vêm sendo banidos das embalagens. Há dois anos, por exemplo, a L’Oréal removeu todas as palavras com conotação parecida, caso de ‘whitening’, dos produtos. O movimento rolou depois que a filial indiana da Unilever anunciou que mudaria o nome de seu creme para clarear a pele, “Fair & Lovely” (algo como “Clara & Bonita”), após denúncias de que se tratava de uma alcunha racista. Há otimismo (ainda que tardio) no ar, entretanto. Assim analisam as duas especialistas. ‘Muitas empresas me procuram para dar consultoria sobre cosméticos que, de fato, atendam a população negra brasileira. Acho que será cada vez mais fácil encontrá-los’, aposta Katleen.

Ancestralidade é caminho de futuro

‘O modelo de sociedade vigente é o modelo da branquitude. Então, por mais que você tenha uma aceitação estética, como a do cabelo, você ainda passa por um processo que faz com que a sua subjetividade não te reconheça como belo’, aponta Katiúscia Ribeiro.

Fazendo um paralelo com Frantz Fanon, que discorre sobre o assunto em ‘Pele Negra, Máscaras Brancas’, livro lá de 1952, ela explica quea negação aos traços negroides ainda é comum – ainda que estejamos falando daquele momento a sós, de frente para o espelho. ‘Por mais que você enxergue beleza, há uma estrutura que vai dizer que o belo é o outro. E essa busca por traços mais afilados, por traços fora dos padrões da negritude, é a busca da branquitude. Como diz Fanon, é colocar a máscara branca para ser aceita’, explica.

Para a filósofa, é urgente que resgatemos outros modelos de estética, seja por nós mesmas, seja para que presente e futuro sigam em revisão. ‘Os filtros no Instagram, a cosmética, os produtos dermatológicos, os tratamentos de pele? Há uma indústria por trás disso e ela também atende a uma proposta ocidental de mundo. O resgate à ancestralidade é um resgate à história. História é poder, e a construção desse poder é capaz de reconstruir um olhar sobre si mesmo’, diz, certeira.

Fonte: Glamour Brasil Online

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