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Falha em pílula deixa ao menos 170 mulheres grávidas no Chile, diz entidade

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De uma hora para a outra, a estudante e dona de casa Gloria Román, 25, começou a se sentir muito mal, não conseguia comer, teve uma infecção e perdeu 10 quilos. Os médicos decidiram, então, submetê-la a uma série de exames para encontrar a origem do problema. Era novembro de 2019 e um ultrassom abdominal deu a resposta: apesar de estar tomando anticoncepcional, Gloria estava grávida.

“Foi impactante receber a notícia, não estava nos meus planos. Eu me cuidava e, mesmo assim, engravidei. Fiquei chocada, não tinha economias e queria continuar a faculdade”, diz a jovem, que garante que tomava os comprimidos todos os dias no mesmo horário.

Meses depois, viu na internet uma notícia que podia explicar a gravidez inesperada. Após denúncias de usuárias, o ISP (Instituto de Saúde Pública) do Chile anunciou, em agosto de 2020, a retirada de circulação de um dos lotes das pílulas Anulette CD. Quatro dias depois, o órgão informou que um segundo lote também tinha problemas e suspendeu o registro do medicamento.

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“Quando eu vi a notícia, comecei a investigar. Essas eram exatamente as pílulas que eu tomava antes de ficar grávida”, diz Gloria. Só que ela não estava sozinha, e o anúncio do órgão gerou uma comoção. Segundo a farmacêutica responsável pelo registro do contraceptivo, os dois lotes com defeito somam 276.890 cartelas.

“O mais grave é que ainda faltam muitas informações. Não sabemos, por exemplo, quantas mulheres receberam o medicamento. Temos informações de que desde setembro de 2019 esses anticoncepcionais estavam em circulação”, diz Estefanny Molina, advogada na Women’s Link, organização internacional que atua na defesa dos direitos das mulheres e acompanha o caso.

Três anticoncepcionais sob suspeita; um deles fabricado no Brasil

Pouco depois do anúncio sobre o Anulette, o problema aumentou. Em outubro de 2020, o ISP suspendeu quatro lotes de outros dois anticoncepcionais, o Minigest e o Conti-Marvelon, que apresentavam falhas na apresentação ou na concentração da substância ativa.

Os fármacos Anulette e Minigest são produzidos no Chile, mas o Conti-Marvelon é fabricado no Brasil pelo laboratório Eurofarma e comercializado no país vizinho pela MSD (Merck Sharp & Dohme), uma multinacional farmacêutica.

Desde que foram publicadas as primeiras notícias sobre o caso, a organização Miles Chile, que atua na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos no país, já recebeu mais de 170 denúncias de mulheres que usavam os anticoncepcionais com defeito e ficaram grávidas.

“A maioria dessas mulheres é jovem, de classes baixa, algumas que já tinham filhos e não desejavam outro naquele momento. Trata-se de uma catástrofe massiva, especialmente porque esses contraceptivos foram distribuídos na rede pública de saúde”, diz Laura Dragnic, advogada da organização.

O episódio no Chile lembra o caso “pílulas de farinha” no Brasil em 1998, que resultou em dezenas de gestações indesejadas e ações na Justiça contra a Schering, farmacêutica então responsável pelo anticoncepcional.

“Se trata de uma catástrofe”, diz advogada de entidade que apoia vítimas

Segundo Miles Chile, os lotes de Anulette CD foram comprados no fim de 2019 e, como só em agosto do ano seguinte foi suspensa a sua distribuição, algumas dessas mulheres já deram à luz seus filhos.

Uma delas é Gloria Román, que por conta da gestação indesejada teve que deixar o emprego e, sem o apoio do pai da criança, se viu sozinha para cuidar do filho que tem uma série de alergias alimentares e de pele. “Tenho que analisar todos os produtos antes de comprar, porque ele é alérgico desde a pasta de dente até a alguns alimentos, como o leite. Meu filho tem cólicas, sangramento, vômitos e refluxo, além de uma pele muito sensível”, diz.

Na época em que engravidou, ela trabalhava em bar sem contrato fixo de trabalho. Com um filho pequeno, acabou ficando sem emprego. “O meu sonho é conseguir voltar a estudar enfermagem. É algo que eu gosto muito e falta muito pouco para concluir o curso, mas infelizmente agora não posso”, diz a jovem sobre o plano interrompido.

Além dos seis lotes com problema identificados pelo ISP, a organização Miles recebeu 27 denúncias de outros lotes com defeito, de medicamentos que continuam sendo distribuídos. Questionado sobre o caso, o ISP não respondeu às perguntas enviadas por Universa.

Queremos que o Estado do Chile reconheça que se trata de uma catástrofe. Por isso, estamos pedindo em instancias nacionais e internacionais que seja divulgada a informação completa e verdadeira e que haja uma reparação coletiva dessas mulheres Laura Dragnic, advogada de Miles Chile

Anulette CD: cartelas tinham pílulas quebradas e trocadas

Das 170 mulheres que procuraram a organização Miles Chile, quase todas eram usuárias de Anulette CD, pílula de 28 comprimidos distribuída gratuitamente nos centros de saúde do Chile. Apenas dois casos se referiam a uso do Minigest e, até o momento, não houve reclamações de pessoas que utilizavam o Conti-Marvelon.

As cartelas de Anulette CD têm 28 comprimidos combinados, sendo 21 com hormônios para impedir a ovulação e sete de placebo. Segundo o Instituto de Saúde Pública, o lote com defeito tinha cartelas com pílulas danificadas, ausentes ou trocadas, ou seja, no lugar das pílulas que deveriam prevenir a gravidez, havia algumas de farinha. O problema foi detectado por usuárias e profissionais de saúde, que reclamaram ao sistema de saúde.

Pela falha no Anulette, o instituto condenou, em fevereiro deste ano, farmacêutica Silesia a uma multa equivalente a R$ 520 mil. No caso das pílulas do Minigest 15 e Minigest 20, a Silesia foi quem pediu a retirada de circulação. Em três lotes da marca, foi detectada quantidade insuficiente da substância ativa, o que, segundo especialistas, afeta a eficácia do método.

“Esse tipo de medicamento tem uma dosagem em microgramas, então qualquer perda da integridade do comprimido, se estiver quebrado ou danificado, pode ser relevante e afetar a sua efetividade”, disse a Universa a farmacêutica responsável por um centro de saúde em Santiago, que preferiu não se identificar.

Farmacêutica e Anvisa dizem que erro não afetou o Brasil

Há seis meses, depois da retirada das duas marcas de anticoncepcionais de circulação, o ISP emitiu um comunicado também sobre o Conti-Marvelon, feito no Brasil e vendido em farmácias no Chile. De acordo com o órgão, o anticoncepcional de 28 comprimidos tinha falhas no esquema impresso na cartela.

Os comprimidos são diferenciados em branco, verde e amarelo para facilitar a rotina da usuária e sinalizar a ordem que cada pílula deve ser tomada. O erro em um dos lotes do Conti-Marvelon estava nas cores sinalizadas na cartela, o que poderia confundir a ordem de administração pela paciente.

Procurada por Universa, a brasileira Eurofarma, que fabrica o Conti-Marvelon vendido no Chile, pediu que a MSD fosse consultada. Em nota, a MSD informou que não houve alteração na composição das pílulas, mas reconheceu que a utilização do medicamento na sequência diferente da recomendada “pode levar a um sangramento irregular ou mesmo a redução da eficácia contraceptiva”.

No Brasil, o medicamento é comercializado com o nome comercial Mercilon Conti. Segundo a MSD, “como o problema relatado refere-se a um lote específico [número 608442] vendido no Chile, não houve nenhum impacto ou necessidade de medidas preventivas a respeito” em território brasileiro.

Universa procurou a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que confirmou que, no Brasil, não foram registradas reclamações, processos de investigação ou qualquer medida restritiva em relação ao Mercilon Conti.

Faltou ação coordenada no país, diz profissional

Nas três marcas citadas, as usuárias foram orientadas pelo sistema de saúde chileno a procurar seus médicos e a substituir a marca ou trocar a cartela com defeito por outro lote em bom estado. Do ponto de vista da saúde pública, a farmacêutica responsável pela distribuição de medicamentos em um posto de saúde em Santiago explica que faltou uma reação coordenada sobre o caso dos anticoncepcionais com defeito.

“No Chile, a atenção à saúde pública é de responsabilidade municipal, e a resposta foi muito diferente em cada lugar do país”, explica. “O grande problema é que não há um controle de quais mulheres receberam os lotes com defeito, não sabemos nem quantos foram efetivamente distribuídos, então não há como procurá-las”, diz a profissional, que preferiu não se identificar com medo de represálias.

Laboratório chileno diz que falhas foram pontuais

Em nota, Laboratorios Silesia, responsável pelo registro de Anulette e Minigest 15 e 20 no Chile, disse que as falhas foram pontuais e não afetaram a eficácia dos medicamentos. A empresa informou ainda que não recebeu denúncias de gestações decorrentes de falhas nos lotes descritos. “É importante mencionar que, do ponto de vista estatístico, a eficácia dos anticoncepcionais modernos não chega a 100%”, disse.

Sobre o Anulette CD, Silesia informou que o erro foi detectado em apenas 12 cartelas de um total de 276.890 dos lotes B20034A e B20035A identificados pelo ISP. A farmacêutica chilena também disse que iniciou uma investigação sobre o caso e que “foram implementadas medidas preventivas e de controle” para evitar falhas semelhantes. A empresa diz ainda que o ISP retirou a suspensão do registro sanitário de Anulette CD, que voltou a ser comercializado.

Sobre o Minigest, o laboratório disse que identificou o problema em análises de rotina e prontamente acionou o ISP para retirar, de forma preventiva, o lote com problemas do mercado. Procurado pela reportagem, o ISP não respondeu aos questionamentos do Universa.

Entidades pedem medidas de reparação e mudanças na lei

As organizações Miles Chile e Women’s Link pretendem levar o caso aos tribunais chilenos e a instâncias internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos, para pedir a responsabilização do Estado e das farmacêuticas envolvidas no caso. “Essas mulheres tiveram seus projetos de vida afetados por conta da negligência dos laboratórios e do Estado chileno. Houve uma cadeia de violações aos seus direitos reprodutivos”, diz Estefanny Molina, da Women’s Link.

Um dos pontos urgentes do debate é a falta de acesso à interrupção legal da gestação nesses casos. No Chile, o aborto é crime, com exceção para casos de estupro, risco à vida da mulher ou inviabilidade fetal. Em janeiro deste ano, um projeto semelhante ao aprovado na Argentina pela legalização começou a ser discutido na Câmara dos Deputados do Chile.

Fonte: Universa

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