Fraudes no Farmácia Popular acendem alerta no setor
Entidades e especialistas reconhecem desvios, mas
advertem para distinção entre delitos e falhas involuntárias
por Márcia Arbache em


As novas denúncias a respeito das fraudes no Farmácia Popular em benefício do tráfico internacional jogaram luz sobre um problema grave, com consequências ainda não dimensionadas para a saúde da população. O Panorama Farmacêutico ouviu entidades setoriais e especialistas para repercutir o tema, que pode ser apenas a ponta de um grande iceberg.
De acordo com investigação da Polícia Federal, a soma atual de recursos públicos desviados chega a R$ 40 milhões. Mas Guilherme Mesquita, consultor da Regulariza Farma, lembra que vendas irregulares e fraudes no programa ocasionaram perdas de R$ 7,4 bilhões entre 2015 e 2019, de acordo com dados comprovados pela Controladoria Geral da União (CGU).
Entre as ilicitudes figuram transações para pessoas falecidas, simulações de vendas e compras de medicamentos sem documentos comprobatórios. ‘’Não é preciso atestar a validade do documento apresentado na hora da compra. O órgão fiscalizador só vai solicitá-lo em um ou dois anos, caso tenha acesso a alguma denúncia ou identifique qualquer indício de ilegalidade’’, ressalta.
Ele frisa, no entanto, que o programa vem sendo aperfeiçoado, com diminuição gradual do prejuízo aos cofres públicos. De 2020 a 2022, o montante totalizou R$ 2,5 bilhões – ainda significativo, mas 46% inferior à média do mesmo período anterior. E desde 2023, após o governo federal anunciar a retomada dos credenciamentos de farmácias, o DenaSUS e o Departamento de Assistência Farmacêutica (DAF) do Ministério da Saúde ampliaram os mecanismos de combate a esses atos criminosos – os órgãos responsáveis pela auditoria bloqueiam 140 mil tentativas diárias de autorizações de vendas.
O executivo lembra que o Ministério permite fazer a transferência de titularidade, cotas sociais e endereço de uma drogaria, se houver interesse mútuo das partes na negociação. “Mas é obrigatório atualizar os dados nas vigilâncias sanitárias municipais e federal e no Farmácia Popular, se estiverem credenciadas. Estas também precisam seguir à risca as determinações da Portaria 5, de setembro de 2017”, adverte.
Em outras situações acontecem irregularidades por falta de conhecimento da Portaria, que exige uma série de documentos a serem apresentados para a dispensação do medicamento, de acordo com o tipo de paciente: com procuração, menor de 16 anos, mulheres incluídas no Dignidade Menstrual e outros. Para as fraldas, não há restrições de idade, mas menores de 60 anos precisam ter o CID na receita, que é diferente da prescrição para maiores de 60 anos.
Mesquita explica que, para 2025, foram destinados ao programa R$ 4,2 bilhões e destaca que o governo federal está reforçando a segurança do sistema. ‘’O Farmácia Popular é um diferencial competitivo para as drogarias, com benefícios para toda a cadeia do setor’’, afirma o consultor, que lançou um aplicativo com recursos de inteligência artificial para simplificar a regularização de farmácias junto aos órgãos competentes.
ABCFarma prega cautela após fraudes no Farmácia Popular
Apesar da incidência de fraudes no Farmácia Popular, o presidente-executivo da ABCFarma, Rafael Espinhel, reforça a necessidade de se fazer a distinção entre fraudes e irregularidades. O dirigente pontua que é preciso tomar cuidado com a veiculação dessas denúncias. ‘’São contextos diferentes. Não se pode generalizar porque há o risco de se colocar em suspeição uma política pública que é essencial. E é fundamental deixar claro para a população que a cadeia do setor não compactua com esse esquema fraudulento’’, salienta.
Ele fala do impacto que divulgação dessas atividades ilegais pode causar sobre a continuidade do programa, que ampliou o acesso gratuito da população a medicamentos. A entidade representa cerca de 15 mil farmácias independentes, parte das quais inscritas no Farmácia Popular, que tem 31 mil drogarias habilitadas. Desse total, mais de 65% são PDVs independentes, cuja maior parte da receita provém de vendas pelo programa.
A ABCFarma tem atuado junto ao comitê técnico do programa com propostas para o aprimoramento da fiscalização e do controle na dispensação de medicamentos. Entre as medidas sugeridas estão a implantação da biometria facial, o monitoramento e análise do cruzamento de dados e melhorias dos processos de auditorias para assegurar maior fluidez e agilidade. ‘’O comitê é importante para promover esse diálogo institucional’’, argumenta.
Do lado dos associados, a entidade auxilia as farmácias quanto a padrões a serem observados no processo de dispensação dos medicamentos, por meio de webinars, notas técnicas e pareceres em relação ao programa. E quando alguma drogaria é notificada, recebe orientação sobre como deve proceder. “Ás vezes, isso acontece em uma auditoria, o que representa uma ocorrência inevitável. Pode ser uma eventual irregularidade, a ser corrigida com um ajuste. É preciso analisar o que, de fato, aconteceu”, pondera.
Treinamento contínuo de colaboradores evita ocorrência de irregularidades
Hebert Freire, da consultoria Inforpop, especializada no atendimento ao programa, vê a situação sob outro ponto de vista. Com cerca de 3.800 clientes em todos os municípios que dispõem de unidades do Farmácia Popular, ele ressalta que a ‘’maioria esmagadora’’ comete o que considera fraudes de forma não intencional.
“Já configura fraude o simples fato de um paciente assinar a nota fiscal com uma grafia diferente da que consta no documento apresentado para a retirada do medicamento’’, relata. Há também casos recorrentes de atendentes que não pedem a assinatura do cliente e sequer a receita médica”, complementa.
Sem ignorar a gravidade do que foi mostrado nas últimas denúncias, Freire faz uma diferenciação. Para ele, o que falta, na maior parte das vezes, é treinamento de colaboradores e dedicação de gestores quanto à necessidade de se debruçar com afinco sobre a Portaria 5. ‘’São regras que precisam ser observadas criteriosamente e que donos de farmácias não o fazem’’, aponta.
Com recursos de IA, a consultoria criou uma gama de serviços a partir das normas expressas na portaria. ‘’Faça a coisa certa agora para que a drogaria não seja pega no futuro’’, é o mote que Freire repete aos clientes, lembrando que a auditoria pode levar até dez anos, período em que a farmácia fica impedida de vender medicamentos pelo programa.
Sincofarma-SP defende reforço e rigor na fiscalização
O Sincofarma-SP também manifestou preocupação com os fatos revelados. Para o presidente Natanael Aguiar Costa, qualquer desvio de finalidade no programa, que garante o acesso da população aos medicamentos básicos e indispensáveis, ‘’representa grave ameaça à saúde pública, um ataque à ética empresarial e prejuízo direto ao Erário’’.
A entidade mostrou-se disposta a colaborar com as investigações e reforçou o apelo à fiscalização efetiva e rigorosa. ‘’As práticas criminosas de uma minoria não podem manchar a reputação de milhares de farmácias sérias e comprometidas em todo o país. Confiabilidade é o que sustenta o setor farmacêutico’’, frisou.
Costa lembrou que as fraudes não são apenas crimes administrativos, mas também atentados contra a vida, contra a população mais vulnerável e contra todo o setor regulado.