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Malária, a febre das febres

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O mosquito transmissor da Malária: quando a doença é tratada com rapidez, ciclo de transmissão pode ser interrompido – USDA/NYT/Nature

Cercada pela Floresta Amazônica, a Rua Dagoberto Pinder tem o maior número de casos de São Gabriel, segundo a Fundação de Vigilância em Saúde do Estado do Amazonas (FVS). É também um microcosmo do ambiente onde prolifera a malária. Segundo o Instituto Socioambiental, as ruas não são calçadas, a coleta de lixo é precária e não existe fornecimento de água — isso no país onde estão as maiores reservas de água doce do mundo fora da Antártica.

Em São Gabriel da Cachoeira, só 16% dos 44.553 habitantes têm algum tipo de esgotamento sanitário. E não passa de 14% o percentual dos que contam com abastecimento de água. No município mais indígena do Brasil (90% dos habitantes são indígenas), a malária saiu de 50 casos em 2016 para 6.367 casos este ano.

Foi andando por essas ruas que o agente de endemias e técnico em entomologia (insetos) José Pinheiro Júnior, da FVS, contraiu malária pela última vez. Doze malárias já se passaram pela vida de Pinheiro Júnior, de 58 anos, há 26 deles no combate das doenças na Amazônia. Nem o fato de trabalhar com saúde o poupou de uma doença que se alastra com fôlego renovado pela região.

— Somos os primeiros a chegar a povoados e aldeias afetados. Trabalhamos na prevenção. Mas nem sempre há repelente, nem sempre há tempo. São muitos os mosquitos e as febres — afirma ele.

O trabalho de agentes como ele é considerado essencial por especialistas como Cristiano Fernandes da Costa, chefe do departamento de vigilância ambiental da FVS. Hoje no estado há cerca de seis mil agentes comunitários e três mil de endemias, um pequeno exército para combater uma doença que se espalha pela maior floresta tropical da Terra. “Eles são a linha de frente e precisam estar lá a despeito de quem seja o prefeito”, diz Costa.

A malária, segundo ele, foi vítima do próprio sucesso dos programas de controle e da chegada de doentes em fuga da vizinha Venezuela, tragada pelo caos sanitário. Como o sarampo e a pólio, a malária foi dada por resolvida e deixou de ser prioridade. Houve desmobilização dos programas de controle, com fragilização da vigilância das unidades básicas e nas redes de diagnóstico. A tempestade perfeita se formou de vez com a chegada dos venezuelanos doentes.

— A malária perdeu peso político nos municípios. É preciso haver responsabilidade sanitária e programas de longo prazo que independam de mudanças nos governos. A vigilância nas unidades básicas afrouxou. Onde você não tem vigilância, você logo tem casos — explica Costa.

A Amazônia tem 99% dos 194.365 casos registrados em 2017, um aumento de 50,4% em relação a 2016, ano com o menor número de casos em 37 anos e que até então simbolizava o sucesso de 15 anos de redução progressiva daquela que, depois da Aids, é a doença infecciosa que mais mata no planeta.

O Amazonas concentra o maior número de casos. No ano passado ele chegou a 81.302, um aumento 64% em relação a 2016. Segundo a FVS, 35 municípios da Região Norte concentraram 80% dos casos. E destes 16 ficam no Amazonas. O epicentro está na calha do Alto Rio Negro, onde três municípios — São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos — respondem por 53% dos casos do estado.

De acordo com Costa, 73% dos casos são da forma grave, causada pelo Plasmodium falciparum, parasita que havia sido eliminado de lá. A região faz fronteira com a Venezuela, onde o falciparum nunca chegou a ser controlado.

— Falta acesso ao diagnóstico. Ele é simples e rápido. Mas precisa ser aplicado. Na Amazônia, malária é a primeira coisa em que deve ser cogitada quando alguém tem febre ou mal-estar, mas não é isso o que acontece. Com a mudança da gestão das prefeituras em 2016, a malária voltou a crescer em parte porque deixou de ser priorizada — diz Cristiano Fernandes da Costa.

Muitas vezes, indígenas e ribeirinhos chegam à área urbana de São Gabriel, onde é intensa a transmissão de malária, são picados pelo mosquito anófeles, contraem o parasita e voltam infectados sem o saber para suas aldeias, a maioria delas situada a dez ou mais dias de viagem de barco. “E com isso a doença se espalha pela Amazônia”, observa Costa.

Giselle Maria Rachid Viana, do Laboratório de Pesquisas Básicas em Malária do Instituto Evandro Chagas (IEC), em Ananindeua, no Pará, diz que o primeiro desafio é retomar a tendência de redução de casos. O segundo é a reestruturação do atendimento de saúde local, tanto em qualidade quanto em quantidade.

— Muitos municípios não têm condições de fazer trabalho de capacitação dos agentes de saúde, isso impacta na vigilância e no diagnóstico precoce. Os agentes de saúde são fundamentais — frisa Viana.

Ela explica que não há vacina, mas há como interromper o ciclo de transmissão. O diagnóstico precisa ser feito em até 48 horas após o surgimento dos primeiros sintomas e o tratamento começar de imediato. Essa é uma forma de bloquear o ciclo de transmissão, pois as drogas diminuem a carga de parasitas no sangue. Assim, se a pessoa doente for picada, o parasita não será transmitido a outro mosquito.

E mosquito na Amazônia é como o ar. Está em toda parte. “Os mosquitos continuarão, o que você não pode ter é pessoas doentes”, salienta Tania do Socorro Souza Chaves, do Laboratório de Ensaios Clínicos em Malária do IEC. “Malária tem tratamento e cura, mas mata se não tratada a tempo”, adverte Chaves. Numa região gigantesca como a Amazônia e sem vacina para prevenção, ações como borrifar inseticida nas casas e mosquiteiros impregnados são importantes, mas não resolvem.

Manaus pode ser uma “bomba-relógio”

Nas cidades, a doença está principalmente em Manaus, Porto Velho (RO) e Cruzeiro do Sul (AC), esta última com o maior número de casos do país, cerca 24 mil em 2017. A doença existe nas periferias das cidades amazônicas, nos assentamentos rurais, nos garimpos e em áreas desmatadas. Preocupa sobretudo em Manaus, “uma bomba-relógio”, segundo Cristiano Costa.

— Impressiona, mas muitos médicos não sabem diagnosticar a malária na Amazônia, mesmo em cidades como Belém. A ciência é essencial para erradicar a malária. Ela tem respondido. Mas é preciso até mesmo o mais básico, a educação das comunidades. A malária precisa estar na pauta política do Brasil. O desenvolvimento da Amazônia passa pelo controle da malária — salienta Viana.

A malária é lembrada pelas febres cíclicas, que se repetem por muito tempo. Mas ela pode deixar marcas por toda a vida. Um estudo ainda inédito da Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas mostra que crianças acometidas por malária podem ter perdas cognitivas que levam a dificuldades no aprendizado.

— A malária é resultado da desigualdade no acesso à saúde e ajuda a perpetuar essa mesma desigualdade ao afetar a capacidade de aprender em crianças em idade escolar, com consequências por toda vida. É mais que só uma doença. É uma injustiça — afirma Cristiano Costa.

Já se sabia que a malária avançava com o desmatamento. Mas uma pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), publicada em maio na prestigiosa “Scientific Reports”, quantificou esse avanço. O estudo associou cada um quilômetro quadrado de floresta nativa desmatado a 27 casos novos de malária, no período de 2009 a 2015. Isso acontece devido à capacidade do mosquito se adaptar a áreas impactadas pelo homem e lá encontrar alimento em abundância.

— Onde houver gente, haverá mosquito para se alimentar de seu sangue. E precisamos conhecer mais o próprio mosquito para controla-lo melhor — observa a entomologista Izis Monica Carvalho Sucupira, do Laboratório de Pesquisas Básicas em Malária do IEC.

O grupo da professora Maria Alice Mureb Sallum, da USP, cruzou dados de malária em nove estados da Amazônia (Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia e Roraima) do Ministério da Saúde com informações de desmatamento do Instituto do Homem e do Meio Ambiente (Imazon).

— O país esperava controlar a malária em breve. É uma doença de mortalidade baixa, mas elevada morbidade, com muitos dias de trabalho e escola perdidos. Ao permitir a explosão de casos, o Brasil deu dez passos para trás e deitou na rede — lamenta Carolina Batista, diretora médica da Iniciativa de Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi, na sigla em inglês).

Fonte: O Globo


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