Mercado Livre mira venda de medicamentos com compra de farmácia
Gigante de marketplace negocia aquisição da Cuidamos Farma, drogaria da Memed
por Ana Claudia Nagao em
e atualizado em


Com o objetivo de ingressar no varejo de medicamentos, o Mercado Livre confirmou que está em tratativas para a aquisição de uma farmácia. Segundo reportagem do Pipeline Valor, especula-se que o negócio envolva a drogaria Target — nome fantasia da Cuidamos Farma Ltda., localizada no bairro do Jabaquara, na zona sul de São Paulo (SP).
O anúncio já causou os primeiros impactos no varejo farmacêutico. Nos últimos três dias úteis, o valor de mercado das empresas do setor listadas na B3 despencou R$ 2,3 bilhões. A maior queda foi da RD, com perdas de R$ 2,1 bi, com direito a recuo de 6,9% na sexta-feira, dia 29 de agosto. Já a Pague Menos via suas ações caírem 5,8% desde quinta-feira, dia 28. Na Panvel, a redução acumulada foi de 3,8%.
A negociação do ponto físico, pertencente à Memed, foi confirmada pela empresa por meio de nota. “Como etapa final do processo de foco estratégico, negociamos a possível venda de um ponto de varejo físico, sem o estabelecimento de qualquer relação societária ou comercial entre as empresas citadas. A Memed mantém suas atividades focadas na digitalização da saúde no país, sendo utilizada mensalmente por mais de 130 mil médicos para prescrições”, informou o comunicado.
De acordo com o jornal O Globo, a operação ocorre por meio da K2I Intermediação, uma subsidiária não operacional da Kangu, empresa brasileira de logística adquirida pelo Mercado Livre em 2021.
A transação ainda depende de aprovação do CADE, mas não deve enfrentar restrições, uma vez que o Mercado Livre ainda não atua no setor. A iniciativa representa uma estratégia inteligente para ingressar em um mercado que movimenta mais de R$ 200 bilhões por ano, segundo dados da IQVIA, e que é altamente fragmentado.
Para Vitor Pini, do Banco Safra, a aquisição em si teria impacto limitado neste primeiro momento, uma vez que se trata da compra de uma única farmácia. “O poder de fogo do Mercado Livre para competir com as grandes redes farmacêuticas ainda é reduzido, mas o movimento sinaliza uma ambição estratégica importante”, conclui.
Mercado Livre busca contornar os desafios regulatórios
Um dos principais desafios para a venda de medicamentos online no Brasil é a regulamentação da Anvisa, que impõe exigências rigorosas para a comercialização de medicamentos controlados, que exigem prescrição médica.
“Adquirir farmácias com CNPJ autorizado e licenças válidas representa uma vantagem competitiva para o Mercado Livre. Essas unidades físicas funcionariam como pontos de apoio para validar e atender pedidos de medicamentos com receita, contornando um dos maiores entraves do setor digital”, explica Alberto Serrentino, fundador da Varese Retail.
Esse modelo permite automatizar e digitalizar todo o processo, superando uma das principais barreiras da venda de medicamentos pela internet, que é a necessidade de apresentar a receita física ao entregador. “Com a integração digital, o receituário passa a ser validado antes mesmo da entrega, dentro da estrutura da farmácia autorizada”, acrescenta.
Aquisição do Mercado Livre pode transformar o varejo de medicamentos
A movimentação do Mercado Livre promete transformar o setor farmacêutico no Brasil. Para o consultor Olegário Araújo, da Inteligência 360 e do FGVcev, trata-se de uma mudança estratégica relevante, que impõe novos desafios e oportunidades ao setor.
“Nesse contexto, ganha força o conceito de ecossistema, no qual empresas deixam de atuar de forma isolada e passam a oferecer uma gama de soluções interligadas, ampliando sua relevância para o cliente”, afirma.
Segundo ele, a aquisição deve ser vista não apenas como uma ameaça competitiva, mas como um estímulo para que as farmácias adotem uma visão estratégica de longo prazo. “Isso implica sair do modo operacional, focado apenas em resolver problemas do dia a dia, e adotar o que especialistas chamam de liderança ambidestra”, ressalta.
Nesse modelo, os líderes precisam equilibrar dois movimentos simultâneos: manter a eficiência da operação atual e, ao mesmo tempo, planejar o futuro, identificando oportunidades emergentes e inovações capazes de reposicionar o negócio.
Para o especialista, diante da entrada de um player como o Mercado Livre, com ampla capacidade logística e forte presença digital, o varejo farmacêutico precisa desenvolver estratégias em três frentes complementares. “Sua entrada no segmento de medicamentos pressiona as farmácias a reverem seus processos logísticos, de atendimento e entrega, buscando ganhos de produtividade e redução de custos. As farmácias também precisam entender como conquistar e manter a preferência do cliente diante da concorrência digital. Além disso, é preciso olhar para o futuro e entender quais novos serviços podem ser agregados à farmácia”, avalia.
Para Serrentino, a aquisição representa mais do que uma simples ampliação de portfólio. “É um movimento estratégico que reflete uma tendência global: empresas nativas digitais, altamente inovadoras, estão adquirindo ativos físicos para acelerar a expansão e consolidar uma presença omnichannel, integrando os canais online e offline em uma única jornada de consumo”, acrescenta.
Ele cita como exemplo a aquisição da rede Whole Foods pela Amazon nos Estados Unidos, movimento que simbolizou o reconhecimento do varejo físico como alavanca para crescimento e fidelização de clientes no ambiente digital.
Omnichannel como motor de fidelização
Para o professor e especialista em varejo Ricardo Pastore, da FIA e da ESPM, o movimento segue uma tendência natural das empresas digitais inovadoras, que une o melhor dos dois mundos: a agilidade e escalabilidade do digital com a proximidade e confiança do varejo físico”, afirma.
“No varejo moderno, o consumidor espera uma experiência fluida entre os canais, o chamado modelo omnichannel. A possibilidade de comprar em qualquer canal e receber com a mesma qualidade fortalece a fidelização e amplia o valor percebido da marca”, avalia Pastore.
Farmácias como hubs logísticos
Caso o projeto-piloto se mostre bem-sucedido, a expectativa é que o Mercado Livre adquira outras unidades físicas em diferentes regiões do Brasil. Essas farmácias funcionariam não apenas como pontos de venda e atendimento, mas também como hubs logísticos regionais, aumentando a capilaridade e eficiência nas entregas.
“Essa estrutura pode garantir ao Mercado Livre uma vantagem ainda maior na chamada ‘última milha’, aproveitando a proximidade das farmácias com áreas urbanas densas e a crescente demanda por entregas rápidas”, explica Serrentino.
Na visão de Danniela Eiger, analista da XP, a entrada no varejo físico, mesmo que inicialmente limitada — é uma forma inteligente de lidar com a regulação do setor, criando um “mini-centro de distribuição” com cobertura legal.