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Pacientes lideram movimento para evitar falta de medicamento essencial para transplante de medula

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A esperança de pacientes que aguardam na fila do transplante de medula óssea ganhou, em novembro do ano passado, a companhia indesejada da incerteza. Um dos principais medicamentos usados no procedimento deixará de ser oferecido pelo único laboratório autorizado para a distribuição no país. O estoque da droga está garantido apenas até junho. A situação preocupa médicos e instituições, que buscam alternativas para evitar o desabastecimento. A luta é para oferecer uma chance a quem encontrou na perspectiva de cura a força para lutar por uma vida nova.

O Bussulfano é um remédio essencial em grande parte dos transplantes. Na prática, a substância mata a medula doente, abrindo espaço para que uma medula saudável, vinda de um doador compatível, seja aplicada. Sem ela, grande parte dos procedimentos deixaria de ser realizada.

Maristela Graff viu sua rotina ser profundamente alterada em 21 de janeiro do ano passado. O dia marcou o diagnóstico de leucemia mielóide aguda. O tratamento, em casos como esse, começa assim que a doença é confirmada. Internações para quimioterapia são corriqueiras.

Dos últimos 365 dias, 129 ela passou internada na Santa Casa de Porto Alegre. Além de se licenciar do trabalho, evitar contato com amigos e familiares e parar com o chimarrão diário, foi preciso lidar com as dúvidas de João Lucas, de seis anos, que inicialmente não entendia os longos períodos em que a mãe ficava fora de casa.

— Não foi fácil, mas eu tenho um bom suporte familiar e ele está entendendo bem. Quando perdi o cabelo e cheguei em casa com um lenço na cabeça, ele estranhou e pediu pra me ver sem o lenço. Ao me ver sem cabelo, disse que eu não precisava usar o lenço, que ficava mais bonita sem ele. Nos deu uma lição de amor — conta, emocionada.

Nos primeiros meses, os tratamentos deixaram a situação sob controle. Mas, em setembro, com o retorno da doença de forma mais agressiva, foi necessária uma internação longa, de 41 dias. A alta hospitalar ocorreu em uma data simbólica, 7 de novembro, dia em que completou 44 anos.

A recidiva possibilitou a subida deposições na fila, aproximando Maristela do transplante. Mas, dias após chegar em casa, acompanhou apreensiva a notícia de que o Bussulfano poderia sumir dos estoques dos hospitais.

— Receber o diagnóstico é muito difícil. Tu lutas no momento em que descobre, luta na quimioterapia, é abençoada quando tem um doador compatível, luta para ter um leito, para chegar tua vaga, e quando a chega a tua vez, ainda há o receio de não ter a medicação para poder fazer o transplante. É mais uma preocupação —— lamenta.

No entanto, a tensão inicial foi vencida nesta terça-feira (19), quase um ano após o diagnóstico. Maristela recebeu uma medula saudável, doada por uma pessoa que acompanhou sua luta desde o início: a irmã Mariele. O foco agora é aguardar as próximas semanas, consideradas críticas na recuperação, quando é aguardada a “pega” da medula, o que indica o sucesso do procedimento.

Quem também encontrou na família a possibilidade de uma nova vida foi Alexandre Grandi, de 45 anos. Vendedor de carros apaixonado pela profissão, começou a se sentir cansado ao desenvolver atividades simples. Ao investigar as causas, recebeu o diagnóstico de síndrome mielodisplásica, considerada uma forma de pré-leucemia.

Após o susto inicial, comemorou ao lado da esposa, Daniele, e das filhas Mara, de nove anos, e Lívia, de três, a notícia de que tinha encontrado um doador 100% compatível. Mas, após enviar a documentação necessária, a pessoa desistiu de doar. Foi quando a saúde de Alexandre se agravou, o que o levou a aumentar a prioridade na fila de espera. Foi neste momento que recorreu a uma solução caseira. A medula saudável virá da irmã, Jaqueline.

— Eu procuro não lembrar que estou doente. Nós temos que ser positivos e aproveitar ao máximo todos os dias, pois não sabemos quanto tempo vai durar essa vida. Quando fiquei sabendo do problema com o remédio, me deu um aperto no peito. Quantas pessoas dependem disso? — questiona.

Alexandre mantém a expectativa de fazer o transplante nas próximas semanas. Só lamenta o tempo que precisará ficar isolado da família, cerca de 90 dias, além de ficar proibido de ir à praia, uma de suas paixões.

Alternativas

O transplante de medula óssea é indicado em casos de leucemia, displasia e outras doenças hematológicas que não podem ser curadas com medicamentos. Por isso, o procedimento é visto como a última alternativa a pacientes que passaram por outros tratamentos que, mesmo invasivos, não garantiram a cura.

— As outras alternativas de terapia já foram oferecidas. Essa pessoa respondeu (ao tratamento) e está pronta para transplantar. Mas se sabe que (a doença) não vai ficar em remissão por muito tempo. A característica biológica da doença é voltar e voltar e voltar. E, cada vez que retorna, volta mais agressiva. Porque o câncer quer sobreviver — explica a professora do Serviço de Hematologia Clínica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre Claudia Caceres Astigarraga.

Apesar da discussão atual ser em torno do Bussulfano, o desabastecimento de medicamentos utilizados em pacientes que lutam contra o câncer não é uma situação nova. Ela lembra que, para um laboratório informar que uma droga deixará de ser distribuída, basta que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) seja comunicada, sem a apresentação, por parte da empresa, de uma possibilidade viável de substituição.

Diretor da Sociedade Brasileira de Transplante de Medula Óssea (SBTMO), Fernando Barroso defende que a criação de políticas públicas para evitar que o fornecimento de remédios que possuam apenas um distribuidor autorizado não fique comprometido pelas oscilações do mercado.

— Nós acreditamos que é preciso haver uma normatização ou uma nova legislação que permita que o governo ou órgão competente fique responsável, ou possa fazer a importação ou permita que haja registro de um outro Bussulfano no nosso país.

De acordo com Barroso, o Bussulfano está sendo utilizado em casos de transplantes autólogos — quando é utilizada a mesma medula do paciente — , mesmo quando a indicação aponta para outras drogas. No entanto, há dificuldades de reposição desses outros medicamentos, como carmustina e lomustina.

O médico hematologista Marcelo Capra sugere alternativas para uma legislação que traga regras claras que possam evitar qualquer risco a pacientes.

— Uma solução seria amarrar esses produtos antigos e com fornecedor único a produtos novos, com legislação para que os remédios não sejam descontinuados sem o oferecimento de alternativa. O governo poderia assumir essa produção, como em alguns medicamentos, ou facilitar a importação. Hoje, o processo é difícil, burocrático e caro para os hospitais. Isso acaba inviabilizando, seja pela falta do produto no país, seja por tarifas e processos de importação.

Capra ainda lembra que, atualmente, além da questão dos medicamentos, é preciso estimular a criação de leitos para transplante de medula óssea. Muitas vezes, segundo ele, é mais fácil para o paciente encontrar um doador do que conseguir uma vaga para o procedimento.

O Rio Grande do Sul mantém uma média de 200 transplantes de medula óssea por ano, entre todas as variações. No entanto, levando-se em consideração a população gaúcha de 11,3 milhões, o número ideal seria de 600 procedimentos.

Laboratório

O laboratório francês Pierre Fabre é o único autorizado a comercializar o Bussulfano no país. Em novembro, comunicou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que iria interromper o fornecimento devido a uma questão operacional. De acordo com a companhia, a licença do medicamento pertence ao laboratório japonês Otsuka, que subcontrata uma outra empresa farmacêutica para a produção. É justamente essa empresa, única autorizada pela Anvisa, que interrompeu a produção.

Em ofício encaminhado para a SBTMO, em 14 de janeiro, o laboratório Pierre Fabre afirma que segue com a distribuição, embora tenha estoque somente até junho. Em 8 de janeiro, foi realizada uma reunião com a Anvisa para discutir a situação. A companhia se comprometeu em encaminhar um “pedido de excepcionalidade de importação” da droga fabricada por algum outro parceiro do laboratório Otsuka, mesmo sem autorização formal para distribuição em solo brasileiro.

Procurada, a Anvisa confirmou o acerto para que uma solicitação emergencial seja encaminhada. Apesar de não informar prazos, o órgão acredita que, com a medida, haverá tempo para uma solução definitiva.

“A empresa realizará nos próximos dias uma solicitação excepcional à Anvisa, para a importação de um quantitativo deste medicamento suficiente para abastecer o mercado nacional por mais um ano. Dessa forma, há uma previsibilidade de estoque do produto até junho/2022”, ressalta trecho de nota encaminhada pela Anvisa.

Uma solução que vem sendo aventada nos bastidores é a autorização definitiva para que outro laboratório assuma a distribuição do medicamento no Brasil. A empresa farmacêutica indicada é a Accord Farma, presente no país há 12 anos, que confirmou as negociações através de nota à reportagem.

“Referente a tratativas sobre o medicamento Bussulfano, estamos iniciando discussões preliminares com as instituições envolvidas para o registro no Brasil, e quais os caminhos regulatórios e legais necessários”.

Também através de nota, o Ministério da Saúde informou que não padroniza ou fornece o medicamento para hospitais ou a usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), apesar da oferta de tratamentos quimioterápicos cobertos pelo poder público. Na prática, cabe ao hospital definir o tratamento, adquirir os insumos e requisitar o reembolso.

A pasta também afirma que o SUS cobre todos os tipos de transplantes de medula óssea, entre outros, e destaca que fornece a hospitais conveniados o Bussulfano em comprimidos (para transplantes, é utilizado o endovenoso) para tratamento de leucemia mielóide crônica.

“O estoque é informação a ser dada pelos estabelecimentos de saúde e, quando pelo mercado, só pode ser dada pelos produtores ou pela Anvisa. Em caso de desabastecimento no mercado nacional, a Anvisa autoriza a importação diretamente pelos hospitais”, informa o Ministério.

De acordo com dados do Instituto Nacional do Câncer (Inca), foram realizados 411 transplantes de medula óssea alogênicos (quando a medula é de um doador externo) em 2019. No ano passado, houve 256 procedimentos.

Instituições

O assunto também mobilizou instituições que apoiam pacientes em tratamento contra o câncer. São iniciativas que mobilizam a sociedade, divulgando informações sobre o tema ou oferecendo serviços que tornam o enfrentamento à doença menos conturbado.

Fundador e superintendente do Instituto do Câncer Infantil (ICI), Algemir Lunardi Brunetto demonstra otimismo com a resolução da pendência, a partir da mobilização dos principais interessados — quem aguarda um transplante de medula óssea — junto aos órgãos responsáveis por garantir que o mercado mantenha as medicações necessárias.

— Podemos tranquilizar os pacientes. Isso vai ser resolvido (…) No Brasil, quando falta um remédio, tem esse barulho todo. A gente tem que fazer um escândalo para as coisas acontecerem.

Brunetto lembra de outros momentos em que o desinteresse da indústria farmacêutica levou ao temor de desabastecimento de drogas importantes para o enfrentamento de doenças graves no país.

À frente do Projeto Camaleão, Flavia Maoli decidiu deixar em segundo plano a vocação inicial de arquiteta para se envolver com pacientes em tratamento contra o câncer. Com a experiência de quem se curou de um linfoma de Hodgkin após um transplante autólogo de medula óssea —quando a medula é do próprio doador ——, ela integra uma equipe que conta com mais de 50 voluntários.

Em 2013, ao se preparar para o transplante, Flavia começou a contar suas experiências com a quimioterapia em um blog, dando dicas de maquiagem, de uso de lenço para quem perdeu o cabelo, de perucas, de chás para evitar enjoo, entre outras. Um ano depois, ao lado de amigos, começou a promover encontros de pacientes, chamadas de Feiras de Autoestima.

— Nós vimos o impacto na vida das pessoas e pensamos que podíamos fazer mais. Resolvemos fazer uma associação e, em 2018, criamos a Casa Camaleão — conta Flavia.

A casa oferece diversos serviços a pacientes, desde sessões de psicoterapia a oficinas de ioga, de meditação e de tricô e crochê. Mas, com a chegada da pandemia, os atendimentos passaram a ser somente pela internet. A limitação, lamentada inicialmente, mostrou que os serviços prestados pelo Projeto poderiam ir além e chegar às diversas regiões do país. Somente em 2020, 1.218 pacientes foram atendidos.

O local conta com doações para manter os serviços. Mais informações podem ser obtidas aqui.

Fonte: Gaúcha ZH

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