Com a escassez de ingrediente farmacêutico ativo (IFA) para a fabricação de vacinas e os atrasos nas importações, os planos do governo federal de imunizar maciçamente a população contra a covid-19 ficaram ainda mais distantes. Mesmo tendo atingido a meta de um milhão de vacinados ao dia por três vezes, manter a média é impossível sem fluxo de entrega constante da matéria-prima, o que tem preocupado gestores locais quanto à disponibilidade de doses para garantir a injeção de reforço. Especialistas alertam que tais dificuldades dão a janela de oportunidade que o vírus tem para desenvolver variantes mais poderosas e refratárias às vacinas disponíveis, levando o país a um ciclo de novas ondas.
“Mutações, quando favoráveis, representam mais um mecanismo de escape para o vírus. Quanto mais oportunidades ele encontra para se reproduzir, mais chances tem de chegar a essas variações cada vez mais bem adaptadas ao corpo humano”, explica o pesquisador e virologista Felipe Naveca, vice-diretor de Pesquisa e Inovação do Instituto Leônidas & Maria Deane, da Fiocruz Amazônia.
Permitir que a covid-19 se desenvolva pode “afetar futuramente as vacinas”, alerta o virologista, frisando que, por ora, não há indícios de que os imunizantes utilizados no país sejam ineficientes contra novas cepas. “Mas é uma preocupação e não sabemos as consequências disso mais para frente”, frisa.
O problema atual, na avaliação do especialista em gestão de Saúde da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Walter Cintra, continua sendo um desdobramento das escolhas iniciais das autoridades de como encarar a pandemia. “Temos vários problemas nesta campanha de vacinação, decorrentes da postura negacionista do governo federal, que deixou de tomar as medidas necessárias no tempo certo, além de criar dificuldades para governos municipais e estaduais”, aponta.
Cintra afirma que faltou, da parte do Ministério da Saúde, assumir a coordenação da campanha contra a pandemia, especialmente no que se refere aos contratos com produtores de vacinas. “De antemão, era sabido que precisaríamos de uma grande quantidade de vacina, em razão do tamanho da nossa população. Há uma corrida mundial pela vacina, e o Brasil demorou para se mexer”, diz.
Para ele, as apostas foram feitas às avessas. “O Brasil fez parte do consórcio que financiou a Covaxin, produzida pela Índia, mas deixou de tratar com outros fabricantes, como a Pfizer e a Johnson & Johnson. Com isso, ficamos com poucas opções”, observa.
Na visão do especialista, o viés político e tom discriminatório entre as vacinas pelo governo trouxe esse descompasso, de forma que se atrasou a possibilidade de entrega de candidatas que já poderiam ser aplicadas, por possuírem aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) — como é o caso da Pfizer e da vacina da Janssen. Por isso, o descrédito do Ministério da Saúde junto aos governadores e prefeitos, “reticentes em usar todas as vacinas para a primeira dose e correr o risco de ficarem sem a segunda para aplicar, o que poria a perder a vacinação”, diz Cintra.
Poucas garantias e muitas esperanças
CoronaVac (Instituto Butantan) Entregou 2 milhões de doses e tem mais 3,2 milhões garantidas, a partir do IFA de remessa anterior. Caso a chegada de mais 3 mil litros de IFA se confirme, nesta semana, mais 5 milhões podem ser liberadas. O total para o mês fica em, no máximo, 10,2 milhões de vacinas, o que cumpre o cronograma com o Ministério da Saúde. Mas é menos da metade do quantitativo de março, quando foram entregues 22,7 milhões.
Covishield (Fundação Oswaldo Cruz) Depois de enfrentar problemas operacionais e atrasos na entrega de IFA, a nova previsão de entrega é de 18,4 milhões de doses ao ministério. Inicialmente, a promessa era de 27 milhões para o mês. Mas, por enquanto, foram liberados 2,6 milhões, a partir de matéria-prima importada.
Comirnaty (Pfizer) Apesar de o contrato ser para o fornecimento de 100 milhões de doses e já haver autorização de uso no Brasil, a farmacêutica assumiu o compromisso de entregar 1 milhão de doses este mês.
Covishield (Instituto Serum, Índia)Contratualmente, há a previsão de fornecer, em abril, 2 milhões de doses. Mas há um impasse diplomático ainda não superado.
Sputnik V (Instituto Gamayea, Rússia) Sem autorização para uso emergencial, aguarda o aval da Anvisa para a vinda de doses prontas. São 2 milhões por contrato com estados, mais 400 mil pelo acordo com o Ministério da Saúde. Toda a remessa será incorporada ao Plano Nacional de Imunização.
Pressão para não haver apagão
Cansados de esperar que o Ministério da Saúde organize a vacinação contra a covid-19, os governadores se articulam para a compra de 37 milhões de doses da Sputnik V, imunizante russo, e pressionam pela celeridade na aprovação, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), de modo a conseguir incorporá-las ao Plano Nacional de Imunização (PNI) ainda este mês, a fim de que não haja hiatos na imunização pelo país. Em ofício enviado à pasta, o Fórum dos Governadores verbalizou a preocupação de não haver doses para garantir a injeção de reforço.
No texto, o coordenador do grupo e governador do Piauí, Wellington Dias (PT), sugeriu uma revisão semanal das vacinas para garantir a disponibilidade. Sem a segunda injeção, joga-se por terra todo o esforço de imunização feito até agora, que alcançou aproximadamente 10% da população. “Sugerimos a apresentação de orientação para não faltar vacinas para a segunda dose da CoronaVac, conforme o cronograma de entrega, pois esses esforços são necessários para alinharmos a aplicação das vacinas que recebemos periodicamente”, pediu Dias. O receio é por causa do descompasso na velocidade entre as aplicações e a entrega de fármacos pelo governo federal.
O Ministério da Saúde distribuiu 47,5 milhões de doses, mas somente 61% delas chegaram aos brasileiros, de acordo com o Painel Covid-19 – Estatísticas do Coronavírus — plataforma criada pelo analista de sistemas e matemático Giscard Stephanou a partir de dados oficiais. A recomendação da pasta é para que não se forme estoque de vacina.
Mas o próprio ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, admitiu o risco de a vacinação ser paralisada. “O cenário que vemos hoje não é só do Brasil. Há dificuldade em muitos outros países”, disse, na última sexta-feira, atribuindo a carência de fármacos a um problema mundial. (BL e MEC)
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