Fique por dentro dos principais FATOS e TENDÊNCIAS que movimentam o setor

A memória coletiva da Covid-19 e de outras epidemias do século XX

Acompanhe as principais notícias do dia no nosso canal do Whatsapp

A experiência de lidar com a Covid-19 tem produzido uma memória coletiva e dolorosa. No entanto, essa memória não é inédita. No Brasil, o século XX foi marcado por outros episódios em que o isolamento social foi uma das medidas utilizadas para lidar com doenças avassaladoras: no combate à pandemia da influenza (ou gripe espanhola); no tratamento de doenças contagiosas como a tuberculose e a hanseníase; e até mesmo no tratamento de transtornos mentais, que não são contagiosos, mas eram considerados “incômodos” no plano social.

As iniciativas de isolamento social em razão de enfermidades precisaram de suportes materiais que, no cenário pós-doença, assumiram características de patrimônio cultural: instalações que abrigavam os doentes; matérias jornalísticas que abordavam a doença e informavam a população sobre como se prevenir, que catalogadas como acervo em arquivos públicos; abertura estradas de ferro e de rodagem para viabilizar a chegada dos doentes ao local de tratamento; saneamento e zoneamento de bairros, entre outras. Alguns bens e elementos que lembram o enfrentamento das doenças, por serem parte essencial da memória coletiva e da compreensão da trajetória social, são estudados em trabalhos acadêmicos, outros são protegidos por instrumentos administrativos típicos, como o tombamento.

Siga nosso Instagram: https://www.instagram.com/panoramafarmaceutico/

No Estado de São Paulo, a preocupação com a saúde pública, muito decorrente das medidas higienistas urbanas, e o medo das doenças acabarem com o crescimento de grandes centros urbanos, principalmente no final do século XIX, são estampadas também pela edição de códigos sanitários, como o Código Sanitário de 1894, que previa que a localização dos hospitais urbanos deveria ser a mais afastada possível das áreas mais povoadas da cidade de São Paulo.

Mas as epidemias não somente chegavam por cidades portuárias ou se concentravam nas maiores cidades da época em seus hospitais afastados. As ferrovias também foram foco de disseminação, principalmente na época áurea da cafeicultura diante da epidemia de cólera de 1894. O tráfego de escoamento de produção entre Rio de Janeiro e São Paulo fora interrompido várias vezes: dando ocasião a discussões e vetorização das doenças. Desinfetórios foram instalados na estação ferroviária do Valongo em Santos (SP), em Campinas (SP) e em Rio Claro (SP). Nessa época, tuberculose e febre tifóide eram as duas das moléstias que mais matavam na cidade de São Paulo e que dependiam das condições de moradia e modos de vida do homem urbano.

Nesse mesmo período, o mundo ainda passava pelo episódio da Primeira Guerra Mundial e as notícias ainda reverberam e eram sentidas pela população brasileira: a alta dos preços em virtude da escassez de importação e aumento da exportação. Além disso, foi sabido que uma nova doença surgira na Espanha, a “gripe espanhola”, ou influenza. O aumento progressivo dos casos de influenza resultou na publicação de um decreto que estendeu por cinco dias, feriado na cidade de São Paulo e, logo após, mais alguns dias de confinamento, resultando em um total de 66 dias de quarentena. O aumento do número de vendas de sais, como quinino, vaselina mentolada, água iodada e ácido cítrico demonstram uma população que acreditava nas indicações profiláticas do governo, porém reclamava da elevação dos preços.

Além de mudanças nos comportamentos sociais, a busca pela cura também influenciou no surgimento ou desenvolvimento de cidades, inclusive com impacto na oferta de bens e serviços, sem falar nos novos arranjos sociais.

É o caso da atualmente turística cidade de Campos do Jordão, em São Paulo, que assumiu status de município em decorrência da procura para o tratamento da tuberculose. O afastamento e o clima eram considerados terapêuticos pelos médicos da época, num período em que a tuberculose era responsável por setenta por cento das doenças diagnosticadas no século XIX. Uma das principais dificuldades para os que detinham menos recursos era o acesso à região montanhosa. A Estrada Ferroviária Campos do Jordão foi aberta a partir da estação ferroviária de Pindamonhangaba, na E. F. Central do Brasil, pelos médicos sanitaristas Emílio Ribas e Victor Godinho. A justificativa dessa estação era a necessidade de facilitar o transporte de doentes respiratórios. Após a inauguração da estrada de ferro, foi possível pensar em sanatórios para recepção de doentes e o povoado de Campos do Jordão se firmou como local para tratamento para doenças pulmonares, que atendia a enfermos não somente do Estado, mas vindos de todo país.

Mais ao norte geográfico do Estado paulista, a história de Bauru se confunde com o episódio de hanseníase que assolou o país em 1924. Doença transmissível e incapacitante, pejorativamente conhecida como lepra, foi alvo de políticas públicas do Estado para manter o confinamento do doente. Os remédios e procedimentos de curas não eram variados ou eficazes. O asilo-colônia de Aimorés, em Bauru, foi tombado pelo Condephaat, órgão de proteção de patrimônio cultural do Estado de São Paulo. A publicação da Res. SC – 21 de 15 de março de 2016 no Diário Oficial do Estado de São Paulo assim justifica a declaração do valor pelo poder público como símbolo de patrimônio histórico da saúde pública do Estado de São Paulo.

A partir de 1950, com o avanço do tratamento ambulatorial, a internação compulsória foi diminuindo. O isolamento compulsório foi extinto em 1962 pelo governo federal, mas em São Paulo continuou a política de isolamento até 1967. No entanto, o Brasil ainda é o segundo país com mais casos da doença, atrás apenas da Índia. E a luta pela memória e reparação das pessoas com hanseníase (e de seus familiares) tem sido liderada pelo Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) e encontra eco nas lideranças estaduais, que têm discutido as formas de reparação coletiva e individual nas Assembleias Legislativas e nos órgãos de tutela do patrimônio cultural. Isso porque, apesar da existência no âmbito federal, da Lei nº 11.520/2007, que dispõe sobre a concessão de pensão especial às pessoas atingidas pela hanseníase que foram submetidas a isolamento e internação compulsórios, o tema das reparações continua aberto no palco local, dos Estados e municípios.

O afastamento dos acometidos por doenças mentais no Estado de São Paulo também foi reconhecido pelo poder público em um dos seus exemplares estruturais, em um período em que o isolamento desses era desejado. O Condephaat, pela Resolução SC 105/18, em 7 de novembro de 2018 reconheceu, através do tombamento, a memória do antigo Sanatório Philippe Pinel, na cidade de São Paulo, no bairro de Pirituba. Símbolo de políticas para a saúde mental e da interferência do poder público na estrutura familiar, funcionou de 1929 a 1944 — quando passou a ser propriedade do Estado paulista. A estrutura do antigo sanatório, declarada pelo dito tombamento como símbolo do conceito open door, também denota um triste passado de eugenia associada à higiene mental, dispostos nos discursos de pureza racial, similares aos utilizados no período do Holocausto, na Alemanha.

Em 2020, ainda com feridas abertas de epidemias e episódios de isolamento social do século XX, a memória da dor e da cura volta à tona com a pandemia do coronavírus, que asseverou outras crises: a crise institucional e econômica promovida pela Covid-19.

Atualmente, sem sanatórios ou colônias deixados como legados, os exílios impostos pelo novo coronavírus são vividos em solidariedade nas periferias e também estão na nuvem, organizados em informação e dados desterritorializados.

O isolamento social imposto pela Covid-19 acirrou as desigualdades e atingiu de maneira mais perversa a população mais pobre, que mora nas periferias e favelas. Essas pessoas tiveram de encontrar novas formas de lidar com desafios do modelo de cidade que lhes é imposto. Matéria jornalística noticia que em Paraisópolis, segunda maior favela de São Paulo, a união dos moradores se organizou para formar socorristas, adquirir EPIs e macas e contratar outros serviços particulares necessários para atendimento dos doentes mais graves, já que as ambulâncias não entram na favela em época de normalidade e continuaram a não atender aos moradores na crise sanitária.

A importância assumida pela comunicação nos espaços virtuais durante o isolamento social — abrangendo o teletrabalho, a telemedicina, as atividades letivas, as atividades do sistema de Justiça, da Administração Pública e do Legislativo, as horas de lazer e confraternização, o consumo de produtos e até de serviços, dentre outros — indicou com clareza o surgimento do “estado de bem-estar digital”. Estado que não é igual para todos, já que no Brasil há um grande número de “analfabetos digitais”. Esses mais vulneráveis num cenário normal foram terrivelmente afetados pela pandemia, valendo mencionar como exemplo a falta de acesso ao auxílio emergencial por milhões de indocumentados e de pessoas que não conseguiram o cadastramento pelo aplicativo da Caixa Econômica para perceberem o benefício.

Nem só de pedra, lama, fóssil se fará a memória coletiva do século XXI. Muito da dor da pandemia estará guardada na nuvem, inclusive a dor dos que não têm pleno acesso às tecnologias, dos analfabetos e hipossuficientes digitais. Para que a experiência da Covid-19 seja conhecida e apreendida pelas gerações futuras, por meio dos bens de referência ligados à memória coletiva, será preciso uma dose extra de criatividade e vontade, especialmente vontade política. E a sociedade tem um papel essencial na provocação dos poderes públicos para que essa memória da dor da grave crise sanitária seja preservada e nunca seja esquecida, como caminho para garantir a não repetição.

Inês Virgínia P. Soares é desembargadora do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, mestre e doutora em Direito pela PUC-SP, com pesquisa de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violência da USP e especialista em Direito Sanitário pela UNB/Fiocruz.

Anny V. Falcão Schwendler é advogada, mestre em Direito pela UFPB, especializada em Direito Ambiental e Urbanístico pela PUC/MG e especializada em Direito Imobiliário pela OAB/SP.

Fonte: Consultor Jurídico

Notícias mais lidas

Notícias Relacionadas

plugins premium WordPress