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Brasil atravessa crise no fornecimento de penicilina para tratar sífilis

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De um total de 2,5 milhões de frascos encomendados para a rede pública, laboratório entregou menos da metade

 

Margarida Cordão

 

O antibiótico penicilina benzatina está com seu fornecimento ameaçado no Brasil. Conhecido popularmente pelo nome comercial de benzetacil, o fármaco é usado tanto para prevenir a sífilis congênita em recém-nascidos, quanto no tratamento da sífilis em adultos, e faz parte do pacote básico de assistência farmacêutica.

 

O ofício indicando a suspensão da penicilina chegou ao Ministério da Saúde no ano passado, durante a transição de governos. No documento, a Fundação para o Remédio Popular (Furp), laboratório estatal ligado ao governo de São Paulo, pede a rescisão no contrato de R$ 10 milhões – assinado em 2017, para o fornecimento da penicilina benzatina.

 

De um total de 2,5 milhões de frascos/ampolas encomendados para abastecer a rede pública de saúde, o laboratório entregou menos que a metade, 1,15 milhão. A justificativa para o pedido de suspensão? Segundo nota do Ministério da Saúde, “problemas de qualidade do Insumo Farmacêutico Ativo (IFA) para a produção do medicamento”.

 

“Uma parte da penicilina apresentava um problema com o diluente, o que causava entupimentos nas agulhas e nunca era possível dar a dose completa do medicamento”, traduz um técnico do próprio Ministério da Saúde que prefere não se identificar.

 

Apesar da suspensão no fornecimento, o Ministério garante que a rede pública tem medicamento suficiente para atender a demanda do país até o segundo semestre de 2020 e que abriu novo pregão eletrônico para a compra do medicamento. Segundo a pasta, esse ano foram distribuídos 2,7 milhões de frascos da penicilina benzatina para tratar casos de sífilis na gestação e sífilis adquirida, e que está prevista uma nova entrega de 913 mil ampolas a partir de junho.

 

Dependência

Gestores estaduais confirmam que os estoques de penicilina estão em dia, mas o clima de normalidade esconde um problema crônico na produção do medicamento no Brasil e ajuda a colocar fogo no caldeirão que alimenta a epidemia de sífilis.

 

Apenas quatro laboratórios produzem o princípio ativo da penicilina benzatina no mundo. Três deles, na China. Nenhum no Brasil. Como alguém que precisa fazer bolo de chocolate, mas não tem chocolate, o país faz contorcionismos para garantir a matéria-prima da penicilina. Inclusive isentando de fiscalização fornecedores que foram banidos de outros países justamente por problemas na qualidade do produto que entregam, como é o caso do laboratório chinês Semisyntech.

 

Foi justamente esse laboratório que, a pedido da Furp, foi dispensando de registro pela Agência Nacional de Vigilância em Saúde (Anvisa) para fornecimento do princípio ativo. A Resolução 1.963 foi publicada no Diário Oficial de 22 de julho de 2016. Mas, questionada sobre a suspensão do contrato do Ministério da Saúde, a Furp silencia e não confirma o nome do laboratório fornecedor da matéria-prima de baixa qualidade.

 

Não é a primeira vez que o Brasil enfrenta problemas com a penicilina, denunciam especialistas no artigo “Desabastecimento da penicilina e impactos para a saúde da população”. Em 2014, o medicamento começou a faltar e em 2016, pelo menos 16 estados brasileiros ficaram sem a penicilina benzatina. Já o desabastecimento da penicilina cristalina, usada no tratamento da neurosífilis, chegou a 100% no mesmo período.

 

Mas por que o Brasil não produz a matéria-prima de um antibiótico descoberto há quase 100 anos? O médico sanitarista e pesquisador da Fiocruz, Cláudio Maierovich, diz que a dependência é resultado das políticas econômicas.

 

“Houve uma mudança na política industrial brasileira que praticamente destruiu o parque nacional da indústria química fina. O ícone maior dessa destruição foi o governo Collor. Com a internacionalização massiva da economia, essa indústria que tinha começado a produzir na década de 50, perdeu espaço e o Brasil passou a ser exclusivamente importador de matérias-primas”.

 

Segundo números do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), desde 2005 o consumo de fármacos importados pelas indústrias brasileiras cresceu 90%.

 

Na avaliação de Maierovich, a indústria não vai começar a produzir o princípio ativo da penicilina espontaneamente, “justamente porque é barato, ele virou um problema”. Para o pesquisador, a solução passa por uma intervenção forte do governo criando incentivos para a indústria, garantindo mercado estável e vendas em quantidade suficiente, mas ele não acha que estamos nesse caminho.

 

“Minha impressão é de que essa política, que valorizava o papel do ministério [da Saúde] como mediador e incentivador de cadeias produtivas foi interrompida. Isso era parte de um projeto econômico. Era o braço da área da saúde em um projeto de política industrial brasileira, que envolvia o BNDES e a [Financiadora de Inovação e Pesquisa] Finep como financiadores importantes da indústria. Isso me parece que recuou, que parou completamente”.

 

A parceria entre a Fiocruz e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) para a construção do Centro de Referência Nacional em Farmoquímica, um polo de produção de Insumos Farmacêuticos Ativos, é exemplo de uma política estacionada. No ano passado, não houve orçamento para fazer o projeto andar. Esse ano, também não. Os pesquisadores ainda tem esperança de convencer o governo a alocar verbas para o centro, que promete reduzir dependência brasileira na importação de matéria-prima farmacêutica.

 

O contrato com a Furp para o fornecimento de penicilina era um dos braços do programa “Sífilis Não”, lançado pelo governo para tentar conter o avanço da doença. Uma das promessas feitas à época era a de que seriam tomadas medidas de estímulo para a produção da matéria-prima da penicilina no Brasil. Questionado sobre o que foi feito desde então, o Ministério da Saúde não respondeu.

 

Catalisando a epidemia

A suspensão no fornecimento da penicilina é mais um dos ingredientes para um problema que parece longe de ser contornado: o avanço da sífilis no Brasil.

 

Na segunda quinzena de maio, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), divulgou relatório mostrando que foram registrados quase 29 mil casos de sífilis congênita em 37 países das Américas. Desse total, 85% estão no Brasil.

 

Alguns epidemiologistas começam a discutir se é possível categorizar o crescimento de casos como uma epidemia ou se trata de uma reemergência, o ressurgimento de uma velha doença conhecida.

 

O epidemiologista e coordenador adjunto do Programa de DST/Aids do estado de São Paulo, Artur Kalichman, é um pouco mais pragmático no que se refere ao aumento de casos no Brasil.

 

“Pode chamar de epidemia, de endemia, de reemergência, do que quiser. Adicionalmente também está melhorando a qualidade da informação. Uma parte desse aumento tem a ver com estar notificando [mais], mas uma parte é porque tá acontecendo mesmo”.

 

Segundo o último boletim epidemiológico divulgado pelo Ministério da Saúde, entre 2010 e 2017, a taxa de incidência de sífilis congênita aumentou 3,6 vezes, passando de 2,4 para 8,6 casos por mil nascidos vivos. Já a taxa de detecção de sífilis em gestantes aumentou 4,9 vezes, passando de 3,5 para 17,2 casos por mil nascidos vivos. A sífilis adquirida, que só passou a ter notificação obrigatória em 2010, saltou de 2 casos por 100 mil habitantes, em 2010, para 58 casos por 100 mil habitantes, em 2017.

 

O estado de São Paulo tem o maior número de casos absolutos de sífilis. No caso da sífilis adquirida, são 36 mil casos e o 5º lugar nas taxas: 80,5 casos por 100 mil habitantes.

 

“Aqui em São Paulo, alguns municípios, algumas regiões, começam a registrar alguma estabilização e até diminuição da sífilis congênita. A sífilis adquirida, ainda não; continua aumentando. No conjunto do estado [de São Paulo] também continua aumentando, mas deu uma desacelerada. No Brasil como um todo, ainda não ocorrem reduções: de [sífilis] adquirida, de gestantes, quanto a congênita. Em lugar em que não sobe, pode desconfiar que nem a informação está funcionando”, explica Kalichman.

 

Veriano Terto Júnior, vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), acredita que o crescimento da sífilis no Brasil indica um esgotamento do discurso de prevenção. “A própria prevenção ao HIV descansou no discurso ‘use sempre a camisinha’”.

 

Para ele, as políticas que garantem insumos de saúde como acesso a preservativos, testes e tratamento é importante, mas centrar os esforços de prevenção neles e deixar de discutir práticas sexuais acaba criando uma espécie de neblina que atrapalha a prevenção.

 

“Teríamos que resgatar a noção de sexo mais seguro e de processos educativos a longo prazo. Uma pedagogia de prevenção que considera a vida, a trajetória sexual dessa pessoa. Onde a camisinha é um fator importante, mas também como as pessoas negociam comportamentos mais ou menos arriscados, com segurança negociada, tudo o que implica uma abordagem um pouco mais ampla”.

 

Reestruturação do Departamento

Dias depois de ter falado com a reportagem sobre o foco nas práticas sexuais, o Ministério da Saúde passou por uma reestruturação. O Departamento responsável por coordenar a resposta de epidemias de transmissão sexual como a Aids e a sífilis, foi rebatizado como Departamento de Doenças de Condições Crônicas e IST. A mudança não se materializou apenas como uma espécie de tapa-sexo da nomenclatura. A área passa a responder por vários tipos de doenças crônicas, da Aids à hanseníase passando por verminoses.

 

A mudança recebeu críticas de representantes da sociedade civil e entidades de classes como o Conselho Federal de Medicina (CFM). “Eu acho que não ajuda. Não creio que essa mudança seja a solução para alguma coisa”, diz o secretário do CFM, o pediatra Sidnei Ferreira.

 

Kalichman está tentando compreender a mudança. “Eu acho que é um conjunto de coisas. Talvez uma tentativa de apagamento do protagonismo da aids, nesse sentido não é bom”.

 

Em nota, o Ministério da Saúde explicou que “a nova estrutura regimental promove maior integração entre as áreas do Ministério da Saúde, que busca reordenar ações e tomada de decisão das políticas públicas em favor da população e melhor gestão do Sistema Único de Saúde (SUS)”.

 

Entre as instituições que criticaram está a Abia, que também divulgou nota refutando os argumentos do governo Federal, com o risco da medida fragmentar o departamento, estimular a disputa por recursos e comprometer a eficiência da política de saúde pública.

 

Para Veriano, mais do que a falta de penicilina, o Ministério da Saúde pode estar colocando “no fogo alto o caldeirão da epidemia de sífilis e de outras doenças de transmissão sexual”.

Fonte: Portal Brasil de Fato

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