Um relatório do Grupo Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), que investiga indícios de fraude na licitação de aparelhos para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) Covid do Hospital Municipal de Bertioga, no litoral de São Paulo, apontou que alguns dos equipamentos apresentaram problemas mais de uma vez. A prefeitura nega que isso tenha ocorrido.
Com autorização da Justiça, promotores do Gaeco tiveram acesso a mensagens que os investigados trocaram por e-mail. A partir da análise destas conversas, e do material colhido na operação que ocorreu no dia 17 de julho de 2020, eles deram continuidade à investigação, que começou após uma denúncia de um ex-vereador da cidade.
A UTI do Hospital Municipal de Bertioga foi montada no ano passado, para atender a casos graves de Covid-19. E, para abrir dez leitos, a prefeitura assinou contratos emergenciais.
Problemas nos equipamentos
Segundo apurado pelos promotores do Gaeco, dos dez ventiladores pulmonares fornecidos para a Prefeitura de Bertioga, ao menos sete apresentaram problemas. Os promotores analisaram a troca de e-mails entre administradores da UTI e da empresa responsável pelos aparelhos, e concluíram que a empresa Portela Mercantil seria de fachada, e que os equipamentos eram, na verdade, de uma outra empresa, chamada Suprimix.
Em uma troca de mensagens entre a empresa responsável pela locação dos equipamentos e a Coordenação de Enfermagem da UTI de Bertioga, feita no dia 23 de junho de 2020, são relatados problemas em dois ventiladores mecânicos.
Na mensagem, a enfermeira responsável afirma que não é a primeira vez que o mesmo equipamento apresenta problemas. “Um exemplo disso é o ventilador ‘ns:554’, que está sendo enviado neste chamado, o mesmo já foi retirado para conserto duas vezes, essa já será a terceira vez”, escreveu.
Dois dias depois, em um novo chamado técnico, o ventilador mecânico ‘ns:568’ apresentou problema durante o uso em um paciente. A enfermeira escreveu: “O problema chegou a desestabilizar o paciente com risco até de ter evoluído a óbito, fato relatado pelo próprio médico plantonista”. Ainda durante a mensagem, a profissional explica para a Portela Mercantil, empresa responsável pelo aparelho, que o mesmo ventilador mecânico já tinha apresentado o mesmo defeito no dia 1º de junho, e que foi retirado para reparo e devolvido no dia 5. Quatro dias depois, o mesmo problema se repetiu.
Pagamento mais caro em equipamentos
O MP analisa, também, os contratos assinados com a Prefeitura de Bertioga. Segundo o órgão, algumas das mensagens da Portela Mercantil foram enviadas diretamente para o e-mail pessoal da ex-secretária de Saúde da cidade, Simone Papaiz, que ocupava o cargo na época.
Em uma das mensagens enviada à ex-secretária, a empresa usa a expressão “conforme solicitado”, mas o MP alega não ter encontrado mensagem anterior para ser respondida. Ainda segundo o órgão, Simone recebeu a minuta para a locação dos equipamentos, uma espécie de pré-contrato.
O levantamento feito pelos promotores ainda aponta que Bertioga pagou mais caro pelo aluguel de alguns equipamentos, quando comparado ao que foi pago pela Prefeitura de Suzano, por exemplo. O valor unitário do monitor multiparâmetro ficou em R$ 1.820 para Bertioga, enquanto para Suzano custou R$ 630 a menos. Já o cardioversor custou R$ 760 a menos.
Equipamentos descartados
Ainda segundo o relatório do MP, os promotores investigam a origem dos aparelhos alugados. Isso porque, conforme aponta o órgão, uma das empresas investigadas seria especializada em comprar equipamentos médicos usados para serem descartados. Essa comprovação aparece em uma carta de compra de equipamento hospitalar desativado (veja abaixo).
Outra mensagem mostra que o tempo de uso de um dos equipamentos da empresa é de 28 anos (veja abaixo). Os promotores ainda relatam que encontraram mensagens e documentos que mostram que a empresa Suprimix compra aparelhos de empresa que compraria equipamentos que estavam para serem descartados. O que, na visão deles, explicaria vários problemas apresentados nos ventiladores mecânicos usados na UTI Covid do Hospital Municipal de Bertioga.
Prefeitura de Bertioga
Em nota, a Prefeitura de Bertioga ressalta que esta será uma oportunidade de desfazer um equívoco, que alega ter sido fruto do ano político vivenciado em 2020. Confira o posicionamento na íntegra:
“Primeiramente, cabe enfatizar que a UTI Covid do Hospital Municipal de Bertioga, desde sua implantação, funcionou e atendeu seu maior objetivo: salvar vidas. Nesse contexto, o município agiu prontamente para aparelhar o Sistema Municipal de Saúde com equipamentos que efetivamente permitiram o desenvolvimento de atendimento aos munícipes com baixíssimos índices de letalidade.
Assim, a pandemia afetou Bertioga, como todas as demais localidades do Brasil. Porém, no município, a taxa de óbitos ficou entre as menores do estado, porque houve ação administrativa pronta e eficaz, garantindo à população atendimento de UTI em meio à maior crise sanitária vivida recentemente.
Para estruturar o atendimento em meio à pandemia, a administração municipal decidiu por não instalar hospital de campanha ou realizar aquisição de equipamentos de custo elevado, cujos preços se multiplicaram rapidamente durante a crise.
A solução adotada foi a locação dos equipamentos necessários para viabilizar o funcionamento de 10 unidades de tratamento intensivo dedicadas especialmente ao atendimento dos pacientes infectados com a Covid-19. É importante destacar que os preços praticados mostraram-se inferiores aos adotados em contratações similares realizadas por outros municípios na mesma época.
Todos os bens locados tinham sua regular manutenção atestada, sendo esta a comprovação de que estavam em boas condições de operação ao início do contrato. Os equipamentos atendiam as necessidades do poder público local para o funcionamento das unidades extras de terapia intensiva disponibilizadas para o atendimento aos atingidos pela pandemia.
Durante o pico da pandemia, eventuais problemas pontuais verificados nos equipamentos locados foram solucionados com sua substituição por outros idênticos em boas condições de funcionamento, sem despesas para o órgão público.
Desconhecemos qualquer ‘esquema’ envolvendo agentes políticos. Infelizmente, constata-se que a saúde do município tem se tornado temática para falsas notícias eleitoreiras com o objetivo de criar comoção pública. A prefeitura informa que foram seguidas todas as formalidades legais para a contratação da empresa Portela, incluindo a prévia cotação dos preços praticados.
Portanto, não procede a alegação de que apenas sete equipamentos foram utilizados, pois a locação compreendeu, no total, cerca de 60 equipamentos, todos devidamente certificados quanto à sua regular condição de funcionamento, com a documentação necessária, que foi enviada a fiscalização do Tribunal de Contas, assim que solicitada.
Reiteramos ainda que não procede a alegação de execução dos serviços pela empresa Suprimix, já que a locação foi realizada empresa Portela, não se conhecendo nenhum fato relevante que traga dúvida em relação à propriedade dos bens locados. Cabe reforçar que a contratação observou, além da legislação que lhe é própria, a disciplina especial implementada pelo Ministério da Saúde e pela Anvisa.
No ano de 2020, um dos mais delicados capítulos da história da sociedade moderna, no qual ninguém estava preparado para enfrentar uma pandemia mundial, a administração municipal agiu prontamente pautada na responsabilidade e respeito pelo erário, sempre com o objetivo fundamental de salvar vidas. Conscientes de que o objetivo foi cumprido, a administração lamenta qualquer tentativa de deturpar o propósito legítimo da contratação efetuada”.
Empresas
A defesa da empresa Portela Mercantil afirma que o caso está sub judice e em segredo de Justiça, por isso, não se manifestou sobre os questionamentos feitos pela reportagem. A TV Tribuna, afiliada da Rede Globo, não teve retorno da defesa de Alexandre Herculano e da empresa Suprimix. A defesa da ex-secretária de Saúde Simone Papaiz também não retornou à reportagem.
Fonte: G1