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Patentes de vacinas: que lições tiramos das experiências passadas na aids e na gripe

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Se a quebra de patentes das vacinas contra a covid-19 for realmente aprovada, isso representará um feito histórico e poderá diminuir a desigualdade global de acesso aos serviços de saúde no futuro.

Mas uma medida do tipo certamente não resolverá nosso problema de falta de doses no curto prazo.

Essa é a principal constatação feita por cinco especialistas em imunização ouvidos pela BBC News Brasil durante as últimas semanas.

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A análise deles acontece após alguns eventos importantes, como a mudança de posicionamento dos Estados Unidos sobre a questão: no dia 5 de maio, o presidente americano Joe Biden anunciou que seu governo apoiaria a quebra de patentes dos imunizantes nos debates que ocorrem na Organização Mundial do Comércio (OMC).

Alguns dias depois, em 17/05, foi a vez da China também se mostrar favorável à demanda.

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A discussão sobre o tema começou ainda no final de 2020, quando Índia e África do Sul defenderam essa ideia na OMC, entidade que regula o comércio internacional.

À época, a proposta encontrou forte resistência dos países-membros, que preferiram proteger a propriedade intelectual de farmacêuticas e dos institutos de pesquisa.

Mas a evolução das campanhas de vacinação em alguns países confirmou um conceito importante: a pandemia só irá acabar de verdade quando o mundo inteiro estiver protegido.

Em outras palavras, enquanto o coronavírus circular livremente em algum lugar do planeta, a ameaça continua a ser real para todos, pois o surgimento de novas variantes mais transmissíveis e com capacidade de “driblar” a resposta imune coloca em xeque todos os esforços feitos até o momento.

Mas daí vem um problema importante: os laboratórios que fabricam as vacinas já testadas e aprovadas contra a covid-19 não possuem capacidade de produzir bilhões e bilhões de doses de uma hora para outra. Não há estrutura, material ou equipe que sejam suficientes para suprir essa necessidade.

Para piorar, os últimos meses escancararam que a distribuição global de vacinas é absolutamente desigual: até abril, os países ricos já haviam vacinado uma a cada quatro pessoas.

Nas nações mais pobres, apenas um a cada 500 indivíduos havia recebido as doses contra a covid-19.

O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, chegou a classificar essa situação de “chocante” e “grotesca”.

Na última quarta-feira (09/06), os países-membros da OMC aceitaram iniciar formalmente as negociações para aumentar o suprimento global de vacinas contra a covid-19.

E há duas propostas principais na mesa: a primeira, defendida por Índia, África do Sul e outras nações em desenvolvimento, pede a suspensão pelos próximos três anos das patentes dos imunizantes que barram o coronavírus.

A segunda, encampada por União Europeia, Suíça e Reino Unido, entende ser possível aumentar a quantidade de doses disponíveis por meio de acordos de licenciamento e transferência de tecnologia com outros produtores capacitados, que possuem fábricas espalhadas pelo mundo.

‘Episódio histórico’

Independentemente de qual caminho seja acatado pela OMC, o simples fato de existir essa discussão já é algo a ser destacado, avaliam os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.

O médico sanitarista Paulo Buss, professor emérito da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), destaca o impacto trazido pela mudança de posição dos Estados Unidos.

“Nós estamos vivendo um episódio histórico. Quando as patentes adquiriram uma dimensão central no comércio internacional, os Estados Unidos sempre foram o país que mais defendia a preservação dessa propriedade”, avalia.

“O apoio americano é uma fissura importante nessa couraça rígida que protege as patentes e isso vai ter impacto nas negociações internacionais a partir de agora”, completa o professor, que escreveu dois livros sobre diplomacia da saúde e é membro titular da Academia Brasileira de Medicina.

Buss sente falta de uma participação mais ativa do Brasil nessas discussões.

“Isso é uma decepção para nós. A história do nosso país sempre esteve ligada à cooperação internacional, à busca constante por melhorar o acesso a vacinas, medicamentos e ferramentas de diagnóstico”, lamenta. “O Brasil está na contramão de sua própria história.”

‘Claras em neve’ da imunologia

Apesar do simbolismo dos debates, é preciso ter em mente que a quebra de patentes não soluciona a questão mais urgente: a falta imediata de doses para proteger bilhões de pessoas.

Mesmo num cenário em que a propriedade intelectual fosse completamente neutralizada, nenhum lugar do mundo teria capacidade para iniciar a fabricação de novos imunizantes de uma hora para outra.

E isso é ainda mais complicado quando pensamos em produtos modernos, que utilizam tecnologias desenvolvidas nos últimos anos.

“Algumas das vacinas disponíveis atualmente, caso daquelas de mRNA [como a de Pfizer/BioNTech] e as de vetor viral não replicante [como a de AstraZeneca/Universidade de Oxford], são difíceis de fazer. São poucos os lugares que teriam capacidade de estruturar uma planta produtiva dessas rapidamente”, conta o médico sanitarista José Gomes Temporão, que foi ministro da Saúde entre 2007 e 2010.

Para entender a dificuldade em fabricar doses desses compostos mais modernos, a epidemiologista Denise Garrett, vice-presidente do Instituto Sabin de Vacinas, organização sediada nos Estados Unidos que trabalha para aumentar o acesso global aos imunizantes, faz uma comparação com a culinária.

Seguindo a linha de raciocínio dela, quebrar as patentes para ter acesso às “receitas” das vacinas de mRNA sem suporte algum para a fabricação é comparável a “pedir para uma pessoa sem experiência na cozinha fazer um prato que exige bater claras em neve e uma série de outras técnicas mais avançadas”.

E, mesmo se forem produzidas, essas vacinas “genéricas” ainda precisariam passar por todas aquelas etapas de pesquisa e aprovação pelas agências regulatórias, o que certamente acrescentaria alguns meses de espera (e de muito trabalho).

A especialista entende que duas ações imediatas poderiam aumentar a disponibilidade de doses nos próximos meses.

“Para responder à urgência mundial, os países que têm unidades de vacinas a mais precisam compartilhar esse excedente com mecanismos como o Covax Facility, para que elas sejam distribuídas”, diz.

“A segunda estratégia é realizar acordos de produção para que outros centros e laboratórios possam fabricar mais unidades das vacinas já testadas e aprovadas”, pontua Garrett.

Esse modelo, aliás, já acontece na prática: a AZD1222, de AstraZeneca e Universidade de Oxford, por exemplo, foi licenciada para ser produzida pelo Serum Institute, da Índia, e pelo Instituto BioManguinhos da Fiocruz, no Brasil.

A ideia, então, seria expandir esse modelo de transferência de tecnologia – assim, as farmacêuticas poderiam ensinar todo o passo a passo, permitindo que parceiros certificados aprendam a fabricar as vacinas nos seus mínimos detalhes.

Uma parceria na prática

O imunologista Jorge Kalil Filho, professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), teve uma oportunidade única: acompanhar todo o processo de transferência de tecnologia de um imunizante para o Brasil.

“No final dos anos 1990, eu era assessor do então ministro da Saúde, o Dr. Adib Jatene. À época, comecei as conversas para convencer os diretores da Pasteur, farmacêutica detentora da patente da vacina contra a gripe”, lembra o médico.

Negociações concluídas e contratos assinados, o Instituto Butantan ficou responsável por montar a fábrica e receber os materiais necessários para dar início à produção.

Isso tudo aconteceu em etapas e demorou um tempo para toda a fabricação acontecer sem percalços.

“É preciso ajustar os sistemas de controle de qualidade, de envase, de distribuição?”, lista Kalil.

Em 2012, o imunologista já era diretor do Instituto Butantan, cargo que ocupou até 2017, e viu os primeiros lotes 100% brasileiros da vacina contra a gripe ficarem prontos.

“Começamos com 20 milhões de doses, depois subimos para 60 milhões e há projeção para 100 milhões nos próximos anos”, calcula.

Atualmente, o Instituto Butantan tem capacidade para entregar 80 milhões de unidades desse imunizante ao Ministério da Saúde a cada nova temporada.

A campanha de vacinação anual contra a gripe, portanto, não depende mais da importação de insumos ou outros materiais.

Essa experiência recente traz um aprendizado importante: a transferência de tecnologia é mais complicada do que se imagina.

É claro que, durante uma pandemia, não é possível aguardar 12 anos para que os processos estejam dentro dos conformes.

Mas, mesmo com o empenho de todos os envolvidos, completar as etapas necessárias leva alguns meses.

E um exemplo disso é a própria AZD1222, licenciada para a Fiocruz: o acordo de transferência de tecnologia foi anunciado em agosto de 2020, mas a assinatura do contrato e a remessa do material biológico necessário para dar início à produção aconteceram agora em junho de 2021, cerca de dez meses depois.

Durante esse período, os técnicos da Fiocruz correram para montar as instalações, treinar os funcionários e garantir todas as certificações expedidas pelas agências regulatórias.

“Isso exigiu dias e noites de trabalho ininterrupto tanto do lado brasileiro quanto da farmacêutica que nos deu apoio necessário”, detalha Buss.

O planejamento é que as primeiras doses 100% nacionais da AZD1222 sejam entregues a partir de outubro deste ano.

Risco de retaliações?

O hematologista Dimas Covas, atual diretor do Instituto Butantan, é contrário à quebra das patentes das vacinas.

Além de não resolver o problema no curto e médio prazo, o especialista crê que medidas do tipo podem dificultar o relacionamento com as farmacêuticas.

“As empresas detentoras dessas propriedades intelectuais são multinacionais, que possuem uma série de outros insumos, substâncias e medicamentos. A quebra de patentes, então, faz com que elas se sintam prejudicadas e façam até retaliações aos governos”, interpreta.

“As companhias podem, por exemplo, dificultar o acesso dos países que fizerem a quebra das patentes ao mercado farmacêutico. É possível que elas pensem: por que vou trazer os medicamentos para esse lugar, se eles têm essa fama de piratear nossos produtos? Toda vez que você ignora uma patente, cria-se um ambiente de desconfiança e retaliação”, completa o diretor do Butantan.

Covas também pensa que o feitiço pode virar contra o feiticeiro e as propriedades intelectuais dos próprios países acabam desrespeitadas.

“O Butantan, por exemplo, possui a patente da vacina contra a dengue, que está em testes clínicos. Será que alguém pode vir e quebrar essa nossa propriedade também?”, questiona.

Experiências anteriores

Vale destacar, no entanto, que essa discussão é absolutamente nova. Como não há experiências iguais no passado, não é possível prever os possíveis desdobramentos e repercussões caso uma quebra de patentes de vacinas vire realidade.

Uma medida similar no universo da saúde aconteceu em 2007, quando o Brasil quebrou a patente do Efavirenz, um medicamento usado no tratamento da aids produzido pela farmacêutica americana MSD.

Temporão, que era o ministro da Saúde à época, se lembra bem das incertezas daquele período e da dualidade entre as negociações financeiras e as necessidades da saúde pública.

“O laboratório detentor dos direitos resistiu, não queria que isso acontecesse. Ouvimos até especulações que aconteceriam retaliações, que os investimentos seriam prejudicados. Na prática, nada disso aconteceu e tivemos até um crescimento do mercado farmacêutico no país”, rememora.

O médico sanitarista, que também é pesquisador da Fiocruz, entende que o risco de represálias fica ainda menor se uma decisão do tipo acontecer não por iniciativa de um único país, mas, sim, num organismo internacional, como é a OMC.

“Uma decisão política internacional deixaria pouco espaço para que qualquer tipo de retaliação ou postura hostil viesse a acontecer”, avalia.

Ameaça à inovação

Kalil destaca outro possível prejuízo que a quebra unilateral de patentes pode trazer: diminuir os estímulos à pesquisa e ao desenvolvimento de novos produtos.

“As empresas costumam demorar anos e investem bilhões de dólares para criar uma nova vacina. É óbvio que elas não vão ficar contentes se ficarem sem sua propriedade”, raciocina.

A criação de um novo imunizante envolve riscos enormes: as chances de uma candidata não ir bem nos testes clínicos é relativamente alta. Do ponto de vista financeiro, isso pode representar um prejuízo enorme às companhias.

“É preciso ponderar, no entanto, que na pandemia de covid-19 muitas farmacêuticas que foram bem-sucedidas nesse processo já lucraram bastante e poderiam exercer esse ato altruísta de liberar suas patentes para aumentar a disponibilidade de doses”, completa o imunologista.

Há ainda um segundo ponto que deve ser levado em conta nesse contexto: alguns dos imunizantes já disponíveis contaram com investimento público para ficarem prontos.

A farmacêutica Moderna, por exemplo, recebeu mais de US$ 6 bilhões do governo americano para desenvolver sua vacina.

E todo esse dinheiro, colhido a partir dos impostos pagos pelos cidadãos, sinaliza que a discussão entre propriedade privada ou pública pode ficar mais nebulosa em certas situações.

Questões estratégicas para o país

Os especialistas são reticentes em relação às implicações práticas de uma eventual quebra de patentes para a pandemia atual, mas antecipam que uma medida dessas abriria um caminho mais justo e acessível para as crises de saúde pública que virão pela frente.

“Isso pavimenta um futuro com menos desigualdade na distribuição das vacinas entre países ricos e pobres”, antevê Garrett.

Diante de todas as dificuldades com a covid-19, o mundo pode (e deve) ficar mais preparado para as próximas pandemias: isso envolve criar mecanismos para a pesquisa, a aprovação e a distribuição de novas vacinas de uma maneira mais rápida, efetiva e justa.

Temporão avalia que toda essa discussão traz benefícios ao Brasil, que pode aproveitar a oportunidade para aprimorar setores estratégicos em saúde pública.

“Esse debate pode nos ajudar a queimar etapas, internalizar novas tecnologias e ampliar a nossa capacidade produtiva nessa área”, diz.

Mas o sanitarista acredita que, para que isso realmente aconteça, é preciso pensar em políticas públicas de longo prazo, com investimentos maciços na área de biotecnologia.

“Precisamos de uma visão estratégica e de uma política de Estado que construam uma base tecnológica para a produção de insumos, remédios e vacinas”, opina o ex-ministro.

“Somente com essa estrutura vamos conseguir romper nossa dependência dos produtos vindos de outros países.”

Fonte: BBC Brasil

Veja também: https://panoramafarmaceutico.com.br/butantan-entrega-800-mil-doses-de-vacinas-contra-a-covid-19-ao-pni/

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