A pandemia de Covid-19 evidenciou a vulnerabilidade do Brasil na produção de IFAs, cuja dependência do insumo farmacêutico importado chega a 95%. O alerta partiu de Norberto Prestes, presidente executivo da Abiquifi, durante a abertura do IV Seminário Internacional de IFAs Latam, cujo primeiro dia ocorreu nesta segunda-feira, dia 24, em São Paulo (SP) e segue até terça-feira.
O encontro reuniu empresários do setor farmoquímico brasileiro e autoridades do governo federal, assim como convidados internacionais. “Precisamos, urgentemente, avançar de uma condição de zero autonomia para cerca de 20%, o que já garantiria um mínimo atendimento à nossa demanda interna por insumos farmacêuticos ativos”, afirma.
Segundo dados da Anvisa, somando todos os medicamentos com registro no Brasil, chega-se a um total de 2 mil IFAs que são utilizados para a produção desses fármacos. “Nós produzimos em torno de 100 e estas nem são as moléculas mais inovadoras. Em sua grande maioria, são moléculas livres de patentes, o que representa cerca de 5% da produção”, acrescenta. Outro dado alarmante é que a América Latina representa somente 3% do mercado de IFA no mundo.
Até a década de 1990, o Brasil chegou a contabilizar 50% de produção de ingredientes ativos. “Mas com a abertura das importações, feita de maneira abrupta, sem analisar os impactos na indústria nacional, as farmoquímicas começaram a fechar as portas e o mercado passou a direcionar esforços para a importação de insumos, valendo-se especialmente do advento da China como polo de produção global”, reforça Prestes.
Produção de IFAs é questão de soberania
Outro ponto crucial para a produção de IFAs é a ausência de empresas no país que trabalham com os chamados intermediários – matérias-primas utilizadas para viabilizar os insumos. “Existem medicamentos que requerem cinco intermediários para a produção de uma molécula e nenhum deles é comprado no Brasil”, ressalta Prestes.
A Abiquifi, juntamente com 11 entidades, incluindo a Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), também vem discutindo com o governo federal medidas para incentivar a produção interna de intermediários.
“Trata-se de uma questão de soberania nacional e uma visão de política de Estado. É fundamental a concessão de subsídios às farmoquímicas que estiverem produzindo para que elas mantenham um preço competitivo como fornecedoras de insumos, ganhem tração e consigam não só suprir as necessidades nacionais em caso de guerras ou pandemias, como também exportar”, explica Prestes. Em 2024, as companhias brasileiras exportaram US$ 550 milhões em IFAs.
Parcerias e financiamentos
Para que a meta de 20% de produção de insumos seja atingida, uma das propostas é que as Parcerias para Desenvolvimento Produtivo (PDP) voltem a vigorar como alicerce para a saúde pública.
Dados da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde (SCTIE/MS) revelam os benefícios da produção de IFAs no Brasil. No período de 2011 a 2017, o país economizou R$ 4,68 bilhões em redução dos preços de medicamentos destinados à rede pública, por conta da redução do valor praticado por fornecedores que se beneficiaram de IFA nacional.
Outra boa notícia é que apenas entre 2023 e 2024, segundo o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), os investimentos destinados a projetos na área da saúde mais que dobraram. “O montante liberado saltou de R$ 1,77 bilhão para R$ 4,23 bilhões”, informa Carla Reis, chefe do Departamento do Complexo Industrial e de Serviços da Saúde da Área de Desenvolvimento Produtivo e Inovação do banco.
Também no último ano, foram submetidos à Finep 113 pedidos de financiamento para projetos de incentivo à produção nacional. Deste total, 20 projetos que somam R$ 218 milhões já foram aprovados.
Fiocruz realiza censo para mapeamento de empresas produtoras
Segundo o último Censo 2024/25 realizado pela Fiocruz, em parceria com a Abiquifi e Abifina, o mercado nacional tem vantagem competitiva mais robusta entre os países da América Latina, por ser uma espécie de hub de abastecimento da região.
“Temos uma Anvisa classificada mundialmente no nível 4 de 5 em confiabilidade como agência reguladora. E até 2027 devemos atingir a nota máxima”, ressalta Jorge Costa, assessor técnico da vice-presidência de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz.
Neste terceiro censo (anteriormente ocorreram em 2007 e 2013) foram mapeadas 40 empresas produtoras de IFAs, com realização de visitas presenciais. A conclusão é de que há uma boa estrutura para expandir a capacidade ociosa em tempo curto e sem necessidade de muitos investimentos.
“Cerca de 80% destas companhias investem em P&D, num percentual que varia de 1% a 15% do faturamento bruto na esfera privada. Em empresas públicas, como o Instituto Butantan e na Fiocruz, o aporte pode chegar a 50%, uma vez que tudo o que é arrecadado é reinvestido dentro da cadeia produtiva”, ressalta Costa.
O próximo passo é aproveitar parte da metodologia para mapear competências, dificuldades e sinergias com países como Argentina, Colômbia, México e Uruguai. Por aqui, um dos maiores empecilhos apontados pelos gestores das farmoquímicas é a falta de servidores na Anvisa para fazer a análise dos pedidos.
Outra situação que tem prejudicado o produtor nacional e apontada pelos executivos das empresas no censo, é a prática da troca proposital do código NCM (Nomenclatura Comum do Mercosul) por parte de multinacionais que importam o insumo de vísceras bovinas/suínas. “A colocação errada do NCM com valores muito abaixo do mercado tem como objetivo pagar menos impostos, o que gera uma concorrência desleal. A sugestão é criar uma agenda com o MDIC, a fim alertar para esse tipo de fraude fiscal”, ressalta Costa.
Empresas e o IFAs estratégicos
Das 40 empresas mapeadas no censo realizado pela Fiocruz, duas são farmacêuticas que possuem divisão farmoquímica: o Laboratório Cristália e a Libbs. Já o setor de biotecnologia conta com instituições públicas – BioManguinhos/ Fiocruz (RJ); Instituto Butantan (SP); Fundação Ezequiel Dias (MG); Instituto Vital Brazil (RJ) e Tecpar (PR). Na esfera privada, praticamente todas farmoquímicas são de capital 100% nacional, como Globe, Nortec e Blanver.
O próximo passo do Censo 2025 é elencar os IFAs estratégicos para produção nacional e elaborar políticas públicas para definir a implementação de qual empresa fará o quê. Um exemplo emblemático de medicamento que se encaixa neste perfil é a enzima L-asparaginase, indicada para tratar leucemia infantil e que não tem produção no Brasil.
“No passado tivemos um desabastecimento grave do produto e o Inca chegou a criar um grupo multidisciplinar para tratar desta emergência. Lembro-me de que em uma destas reuniões um médico fez um apelo emocionado alertando sobre a perda de vários pacientes pediátricos em função da indisponibilidade do remédio. Crianças que poderiam estar vivas e evoluíram para óbito por falta do ingrediente farmacêutico ativo”, finaliza Costa.
Tipos de insumos farmacêuticos ativos
IFA sintético – Produzidos à base de petróleo, compõem a maioria dos medicamentos consumidos atualmente
IFA biológico – Utiliza-se material como bactérias e vírus para produção do medicamento, tal como as vacinas
IFA de origem vegetal – Um exemplo é a pilocarpina, extraída do Jaborandi, presente em soluções oftálmicas
IFAs de origem animal – A heparina, um anticoagulante extraído da mucosa intestinal de bovinos e suínos, tem a capacidade de transformar o Brasil em um dos líderes mundiais na produção deste insumo, dada a dimensão do rebanho presente no país