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Negros avançam nas graduações que mais formam executivos, mas ainda são invisíveis para as empresas

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RIO E SÃO PAULO – Um argumento recorrente nas empresas brasileiras para explicar por que têm menos de 10% de negros em cargos executivos num país em que eles são 56% é o de que faltam profissionais qualificados.

De fato, pretos e pardos ainda são minoria em cursos das áreas jurídica, de gestão e marketing e de engenharia e tecnologia, de onde mais saem os altos executivos das empresas. Mas eles existem. E não são poucos.

Levantamento feito pelo GLOBO em dados do Enade, o exame feito por formandos de cursos selecionados pelo MEC, mostra que, em 2018 e 2019, pretos e pardos foram cerca de um terço dos que concluíram Engenharia Civil, Engenharia da Computação, Administração e Direito.

Segundo consultores de RH, os cursos estão entre os que mais têm aprovados em programas de trainees, que formam futuros líderes empresariais.

Na última década, políticas de cotas nas universidades públicas e de bolsas e crédito nas privadas ampliaram a presença de negros no ensino superior. Mas isso não aconteceu nos escritórios das empresas, onde ainda se concentram na base, em funções operacionais. Pesquisas mostram que há muitos negros já formados no mercado, mas subaproveitados.

Essa dissonância, realçada este ano por movimentos antirracistas no mundo, tornou o mercado de trabalho o novo campo das ações afirmativas.

Sob pressão, corporações que diziam ter dificuldades até mesmo para atrair candidatos negros para suas seleções começam a criar programas para aumentar a diversidade racial no topo, como programas de trainees exclusivos para negros.

Fundadora da consultoria especializada em diversidade Gestão Kairós, Liliane Rocha viu a procura de empresas em busca de ajuda profissional para contratar talentos negros aumentar 50% este ano. Consultora de gigantes como Ambev e Via Varejo, ela diz que a tarefa não é difícil se os critérios de seleção mudarem:

— Sempre digo aos gestores: atualizem o olhar para fazer uma gestão de 2020, para essa sociedade atual, que tem intelectualidade negra, tem negros formados, com mestrado, doutorado e experiência.

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Novos critérios

Os negros superaram, em 2018, 50% das matrículas em universidades públicas, que continuam concentrando mais de 80% dos cursos com nota máxima (5) no Enade. A participação de pretos e pardos é bem menor nesses cursos de ponta, mas não insignificante.

Relatórios do Enade mostram que pretos e pardos são mais de 20% dos formandos em alguns cursos de excelência no Rio e em São Paulo, onde estão as maiores companhias do país.

E o desempenho deles na prova não difere muito do dos brancos, chegando a ter média maior em alguns casos. Ainda assim, eles não são nem 3% dos diretores ou dos membros de conselhos de administração, segundo pesquisa da consultoria Talenses/Insper com 532 empresas.

Sofia Esteves, fundadora da Cia de Talentos, uma das maiores consultorias de RH do país, atribui a invisibilidade ao modelo de seleção das grandes empresas, que privilegia requisitos mais comuns entre os brancos para as posições de liderança, como universidade renomada, inglês fluente, experiência no exterior.

Além disso, os profissionais negros não têm as mesmas redes de relacionamento dos brancos e ainda enfrentam o chamado viés inconsciente, que tende a elevar as exigências para os negros com base em preconceitos, ainda que não intencionalmente.

Quando as empresas reprogramam sua forma de recrutar, passam a enxergar a diversidade, diz a consultora, pioneira na seleção de trainees para multinacionais no Brasil:

— Antes, o nome da faculdade reconhecido como boa formadora técnica dava vantagem na seleção, assim como inglês, experiência no exterior. Você só escolhia pessoas do mesmo perfil. Nos últimos anos, as empresas começaram a perceber que talento não tem sobrenome de escola. É da pessoa, da história de vida.

Antes de se formar em Engenharia de Produção numa faculdade pública municipal de Macaé (Norte Fluminense), em 2018, Stephany Ribeiro, de 30 anos, já tinha sido caixa de uma pizzaria, trabalhado em loja e dado aulas particulares de português.

Na faculdade, passou por vários estágios e acredita que cada um desses passos ajudaram em sua preparação para o mercado de trabalho.

Este ano, ela foi aprovada para uma vaga do programa de trainee da GE Renewable Energy para a qual houve dez mil inscritos. Em todas as experiências, precisou provar diariamente sua capacidade:

— Para engajar a equipe de manutenção e provar que eu tinha conhecimento demorou. Num estágio, durante uma reunião com clientes, um deles pediu para eu pegar um café para ele. Nada contra a profissão de quem serve um café, mas as pessoas ainda não veem o negro em outros locais, como na engenharia.

Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV, diz que estudantes negros ainda são minoria nos melhores cursos das universidades públicas porque, geralmente, enfrentam mais dificuldades socioeconômicas e relacionadas à educação básica.

A entrada precoce no mercado de trabalho informal e precarizado reduz ainda mais as possibilidades, diz Claudia:

— O ensino superior já deu passos importantes, como as ações afirmativas, mas ainda é essencialmente branco. Ainda não educamos para uma visão inclusiva, em que as diferenças são celebradas.

Representatividade

Isamar Santos, de 28 anos, começou a cursar Administração numa faculdade particular em 2015 graças a uma bolsa de 100% do ProUni. Mudou para Ciências Contábeis porque achou que teria mais chances de conseguir um emprego.

Ainda durante o curso, ingressou como atendente numa empresa e logo foi transferida para a controladoria por estar na faculdade. Lá, encontrou inspiração para ir mais longe:

— É difícil ver negros em cargos de liderança nessa área, mas eu dei muita sorte porque, na minha primeira experiência, encontrei mulheres negras em altos cargos. Elas se tornaram a minha referência — conta Isamar, que, recém-formada, já está empregada como auxiliar sênior em um escritório de contabilidade e se prepara para uma pós-graduação em comércio exterior.

Para especialistas, formar futuros líderes negros é importante, mas já existe muita gente preparada subaproveitada. A proporção de pessoas com nível superior em funções que não exigem diploma é maior entre os negros e aumentou com a crise, justamente no período em que eles ganharam mais espaço na universidade.

Um estudo da consultoria IDados mostra que, entre 2015 e 2020, subiu de 33,6% para 37,9% a fatia de homens negros graduados subutilizados. Entre homens brancos, passou de 27,2% para 29,6% no período. O índice para mulheres negras aumentou de 27,3% para 33,2%. Entre as brancas, foi de 24,9% para 27,8%.

Uma pesquisa do economista Naércio Menezes e de outros pesquisadores do Insper concluiu que homens brancos oriundos de universidades públicas têm salário médio de R$ 7,9 mil, bem maior que o de homens negros formados nestas instituições (R$ 4,7 mil) e mais que o dobro do de mulheres negras com a mesma formação (R$3 mil).

— Outros fatores compõem a explicação, mas o principal é, sim, a discriminação enraizada em nossa sociedade. Vários estudos mostram — diz Menezes.

A visão de quem furou o bloqueio e chegou ao topo

Chantal Pillet, diretora no Carrefour

“Como advogada e executiva, não vejo muitos profissionais negros, mas eu me formei com outros colegas negros. As empresas devem admitir o problema e identificar o que pode ser feito para mudar o racismo institucional.”

Amauri Ferreira, diretor na GE Healthcare

“Quanto mais subia na carreira, menos encontrava negros. Atualmente, vejo mais na empresa e tento auxiliar para que eles se preparem para cargos de liderança. A nova geração é mais letrada racialmente.”

Lisiane Lemos, gerente no Google e cocriadora da Conselheira 101

“Sempre que vejo empresas que dizem que não há profissionais sêniores negros, digo: Onde você está procurando? Somos 56% da população, não é possível que não se ache um para uma vaga.”

(*Estagiária sob supervisão de Alexandre Rodrigues)

Fonte: Yahoo Brasil

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