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Consumo de analgésicos com ópio em Portugal é “incomparável” ao dos EUA, mas há “prescrições menos adequadas”

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O consumo de analgésicos com ópio, fármacos que estão na origem de uma epidemia nos EUA que mata em média 130 pessoas por dia, mais do que duplicou em oito anos em Portugal. O Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências fala numa “prescrição generalizada” destes fármacos em “situações em que não eram necessários” e deixa um aviso

 

Se há cerca de quatro meses João Goulão não estava preocupado com o consumo de analgésicos opioides em Portugal, o presidente do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) tem agora outra resposta para a mesma pergunta. “Estou preocupado com o que pode acontecer nos próximos anos em Portugal em termos de dependência destes fármacos”, diz ao Expresso. A informação divulgada recentemente sobre o aumento do consumo destes medicamentos “mostra que há uma utilização cada vez mais generalizada destes fármacos em situações que poderiam ser controladas com outros grupos de medicamentos sem potencial para criar dependência”.

 

“Os níveis de dependência ocasionada por prescrição de analgésicos opioides são muitos baixos, mas existem casos em Portugal”, assegura João Goulão. “Há determinados analgésicos opioides que estão a ser muito prescritos e isso pode vir a desencadear muitas dependências num futuro próximo”.

 

Quando, em setembro deste ano, a Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde (Infarmed) divulgou números que mostram que o consumo de analgésicos mais do que duplicou em oito anos, ecoaram vários alarmes e, de imediato, a pergunta — estaria a formar-se em Portugal uma crise de opioides semelhante à que nos EUA fez com que morressem quase 400 mil pessoas entre 1999 e 2017 por overdose de drogas como a heroína e analgésicos prescritos por médicos, e que em média mata outras 130 por dia?

 

José Romão, Coordenador do Plano Nacional para a Prevenção e Controlo da Dor da Direção-Geral de Saúde, recusa a comparação e critica até o “alarmismo” que se gerou ao longo dos últimos meses desde que, a pedido da TSF, o Infarmed divulgou dados que também apontam para um aumento do consumo de opioides analgésicos de ano para ano. Segundo dados fornecidos pela Autoridade Nacional do Medicamento ao Expresso, foram consumidos através do Serviço Nacional de Saúde 3.685 milhões de embalagens destes fármacos em 2018, um aumento de 141% em comparação com os 1.532 milhões de embalagens vendidas em 2010. “Tem havido muita desinformação à volta deste assunto”, começa por dizer o coordenador em entrevista ao Expresso, explicando que Portugal “partiu de um patamar muito baixo de prescrições, abaixo do que era recomendável”, daí o aumento das prescrições destes fármacos, que são utilizados no tratamento da dor grave e crónica oncológica e não oncológica.

 

Teresa Sarmento, médica oncologista que faz parte do grupo de trabalho de Cuidados de Suporte e Paliativos da Sociedade Portuguesa de Oncologistas, corrobora e complementa, sublinhando que Portugal tinha uma utilização “muito abaixo do que era recomendado” a nível europeu e que “havia doentes com dor crónica que eram tratados apenas com anti-inflamatórios e fármacos claramente insuficientes”. Nesse sentido, o aumento da utilização de opioides nos últimos anos é “natural” e é “uma boa notícia” — é “sinal”, aliás, “de que a dor crónica está a ser mais bem tratada”. “Como é óbvio esse aumento vai deixar de se verificar quando se atingir os níveis razoáveis de utilização” destes fármacos, acrescenta em entrevista ao Expresso.

 

Para Dalila Veiga, médica anestesiologista e vogal da Ordem dos Médicos, o aumento explica-se com a maior consciencialização dos profissionais de saúde e dos doentes da necessidade de tratamento da dor — “e este é um aspeto positivo e sobre o qual não devemos recuar, mas que exige uma sensibilização para o seguimento do doente e avaliação da eficácia da terapêutica”. “O crescimento do consumo também se explica com o aumento do marketing farmacêutico. Estes são os dois grandes fatores para o aumento da utilização destes fármacos.”

 

Os analgésicos opioides são uma classe de medicamentos usados no tratamento da dor em função do tipo e intensidade. Começaram a ser utilizados exclusivamente para a dor oncológica, mas atualmente já não é assim. Aplicam-se sobretudo na dor músculo-esquelética — a lombalgia, “que é a causa mais frequente de dor”, sublinha Dalila Veiga — em doenças degenerativas como a artrose de joelho, anca ou ombros, e ainda em contexto de dor pós-cirúrgica. O tramadol é um exemplo de um dos analgésicos opioides mais fracos no mercado. Já a morfina ou o fentanil estão entre os mais agressivos.

 

DGS pediu ao Infarmed para partilhar números das bases de dados

De acordo com José Romão, foi pedido ao Infarmed que partilhasse todos os dados de que dispõe nas suas bases de dados sobre o consumo de opioides de modo a monitorizar as prescrições. Uma das perguntas a que mais interessa dar resposta – além, claro, de saber que fármacos estarão a contribuir para o aumento e quem está a utilizá-los, se mais velhos, novos, se homens ou mulheres, e de que região – é se esses opioides estão a ser utilizados na dor oncológica ou na dor não oncológica, onde a sua utilização levanta mais questões devido à duração “potencialmente maior” do tratamento.

 

Toda essa informação será compilada e divulgada publicamente, “não pretendemos deixá-la no segredo dos deuses”. “Tendo em conta a situação que se vive nos EUA mas também noutros países, e todo o ambiente de pânico, achámos que era importante perceber o que se passa em Portugal. Não vamos enfiar a cabeça na areia e temos a obrigação de aprender com os erros dos outros para não cairmos nos mesmos.” “Embora ainda seja “cedo” para tirar conclusões, até porque o grosso do trabalho de análise de dados ainda está por fazer, José Romão diz ter a percepção de que “não é verdade que haja uma prescrição generalizada” destes fármacos e “má prescrição”. “Obviamente que prescrever opioides não é o mesmo que comprar tomates no supermercado, tem as suas limitações, e os clínicos têm de conhecer muito bem os fármacos e as doses em que estes devem ser prescritos”, diz, embora admita que “têm aparecido situações de prescrições menos adequadas”.

 

As mentiras das grandes empresas farmacêuticas norte-americanas, sobretudo no que diz respeito à extrema dependência causada por estes fármacos, tiveram consequências de tal modo graves que começam a ser responsabilizadas e processadas. Enfrentam atualmente mais de dois mil processos interpostos por condados e estados norte-americanos e têm feito acordos no valor de milhões para evitar os tribunais. As mais recentes orientações técnicas da DGS para a utilização destes fármacos na dor crónica não oncológica são já de 2008 e o documento diz assim: “Embora ainda não existam dados suficientes, parecem não se confirmar os receios de tolerância e da adição induzidos por estes medicamentos, que muito contribuíram para restringir o seu uso aos doentes oncológicos.”

 

José Romão escuda-se no ano de divulgação do documento para justificar o que ali é afirmado e admite que “o risco é muito maior do que achávamos há uns anos”. Também revela que essa circular da DGS vai ser substituída por outra, embora “em termos filosóficos não se vá alterar nada”. “A nova circular não irá restringir nem alargar as prescrições, será tão permissiva quanto antes, e a tónica da orientação estará colocada na necessidade de uma boa seleção dos doentes e de uma boa monitorização da prescrição”, diz, referindo-se em concreto a determinados mecanismos que vão ser criados para controlar as prescrições. “Os médicos não sabem quantas vezes o paciente já foi prescrito com opioides.”

 

A evidência científica, nota Dalila Veiga, que há pouco mais de um mês concluiu a tese de doutoramento sobre esta temática, ainda não responde concretamente aos efeitos do uso destes medicamentos na dor crónica não oncológica. “Existem muitas dúvidas sobre a utilização ao longo dos anos”, diz. “Na minha tese de doutoramento analisei doentes seguidos nas unidades de dor em Portugal durante dois anos e, de modo global, a resposta a estes fármacos é muito variável: a maioria dos doentes a longo prazo acaba por não ter uma grande efetividade na utilização. No entanto, existe um subgrupo de doentes que realmente responde e tem benefícios quer em termos de intensidade da dor quer na melhoria da qualidade de vida.”

 

“Tem um perfil de risco associado e, se a sua utilização não se traduz realmente na melhoria quer em termos de intensidade da dor quer em termos de qualidade de vida dos doentes, não faz sentido”, defende a médica. Não sendo possível saber previamente como alguém vai reagir aos opioides, o aconselhável, considera, é só recorrer a esta opção quando todas as outras já se esgotaram. Além disso, o consumo deve ser acompanhado por outros medicamentos de forma a sujeitar o paciente à menor dose possível. Após um período de teste (nunca menos de um mês), o médico deve avaliar se houve ou não melhorias significativas. “Antigamente, dizia-se que se se descontinuasse um analgésico opioide num doente com dor crónica ele ainda iria piorar. Hoje sabe-se que não é assim.”

 

A utilização a longo prazo de opioides pode desencadear mecanismos de tolerância, ou seja, deixando estes de ser tão eficazes porque o organismo adapta-se. Também pode até acontecer uma reação paradoxal e o próprio opioide provocar ainda mais dor (hiperalgesia por opioides). “Os opioides têm ainda um risco real de desenvolver situações de abuso e adição”, explica ainda Dalila Veiga.

 

Alterações legislativas tornaram os fármacos mais baratos e acessíveis

Devido à necessidade de Portugal estar ao nível de outros países no que diz respeito ao consumo de analgésicos opioides, foram feitas, em 2008, alterações à legislação sobre a comparticipação pelo Estado destes fármacos, que passaram, assim, do escalão C (com uma comparticipação de 37%) para o escalão A (95% e, a partir de 2010, ano em que foram definidos novos escalões de, 90%). Foram publicados naquele ano dois despachos em Diário da República, um referente à dor oncológica e outro à dor não oncológica. Aí, lê-se que, “tratando-se de medicamentos indispensáveis ao tratamento da dor crónica não oncológica moderada a forte”, é “necessário por motivos de saúde pública reduzir a prevalência da mesma e facilitar o acesso dos doentes a esta terapêutica”, promovendo desse modo a “equidade e universalidade do tratamento da dor” e contribuindo “para uma melhoria significativa da qualidade de vida dos doentes”.

 

Além de se terem tornado muito mais baratos para o consumidor, os analgésicos opioides passaram também a poder ser prescritos por qualquer médico desde que com a devida referência, nas prescrições, às duas portarias sobre a comparticipação pelo Estado, e desde que os doentes estejam referenciados em unidades de dor ou de cuidados paliativos, devendo estes “ser reavaliados com uma periodicidade não superior a um ano”. “Desde que seja feita essa referência, qualquer médico pode prescrever”, reforça Teresa Sarmento, lembrando que “há cerca de 10 anos, havia receitas manuais e receitas especiais para a prescrição de opioides que estavam guardadas em cofres nos hospitais ou noutros locais específicos e às quais só podia aceder um grupo muito limitado de médicos”. “A prescrição estava muito restrita ao meio hospitalar, consultas de dor, anestesia e oncologia, e mesmo assim com muitas limitações”. Isto fez com que “se viesse a verificar que Portugal tinha um consumo de opioides muito abaixo do que seria recomendável tendo em conta as patologias mais prevalentes no país”, sendo comum também a divulgação de relatórios da qualidade de morte que mostravam que as pessoas tinham pouco acesso a opioides fortes cuja utilização era considerada uma boa prática no acompanhamento de pessoas em final de vida”. “Estávamos muito atrás e havia um caminho para recuperar”, explica a médica oncologista. Mas há mais razões, no seu entender, para o aumento das prescrições, nomeadamente “o crescimento das equipas de cuidados paliativos, quer em contexto hospitalar, quer comunitário, e a formação nesta área”.

 

“O sistema de prescrição nos eua é totalmente diferente do nosso”

Tanto Teresa Sarmento como José Romão afirmam que a prescrição destes fármacos em Portugal é “tão controlada” que dificilmente poderá acontecer no país o que aconteceu nos EUA, onde no final dos anos de 1990 as mais poderosas empresas farmacêuticas, como a Purdue Pharma, a Johnson & Johnson e a Teva, lançaram agressivas campanhas de marketing, envolvendo dinheiro, artigos em revistas científicas escritos por médicos a quem pagavam, e anúncios publicitários em que mentiam ou desvalorizam os riscos de dependência destes fármacos e exageravam os seus benefícios. Várias publicações norte-americanas recuperaram uma carta publicada no “New England Journal of Medicine”, a mais prestigiada publicação na área, dirigida ao editor e em referência a um estudo que havia sido conduzido com doentes que tinham sido tratados com opioides num hospital. A dada altura, lê-se: “Addiction rare in patients treated with narcotics” (“raros indícios de adição em doentes tratados com narcóticos”). O fentanil, por exemplo, um dos fármacos que mais tem contribuído para o número de overdoses registados nos últimos nos EUA (de há vários anos para cá começou a ser produzido de forma ilegal, em laboratórios clandestinos, e vendido no mercado negro) é 100 vezes mais poderoso do que a morfina e uma única dose pode ser letal.

 

Para dissuadir qualquer tentativa de comparação, Teresa Sarmento nota que o sistema de prescrição nos EUA “é totalmente diferente do nosso” e que “a prescrição na Europa, e em particular em Portugal, está muito regulamentada”. “Para levantar qualquer opioide numa farmácia, além de ser necessário apresentar uma receita com as tais portarias, o doente também tem de apresentar identificação e estar a ser acompanhado em consultas, como as da dor, em que o médico possa prescrever esses fármacos”. “Nos EUA, ciclicamente há epidemias de adição porque uma vez que a pessoa tenha acesso a uma primeira receita, por ter, por exemplo, partido uma perna e sido operado, esta pode ser renovada automaticamente por qualquer médico. Em Portugal, essa pessoa seria orientada para uma consulta da dor e, se essa dor não for crónica, apenas aguda, e resolvida pela cirurgia, não poderia renovar a receitar”. Assim, conclui, “o perigo de adição, que se gera quando a pessoa já não precisa do opioide mas continua a utilizá-lo, é praticamente impossível em Portugal”.

 

Quantos aos médicos de família, “é verdade que também podem prescrever, mas com controlo”. Que controlo? “São obrigados a verificar sempre se a patologia se mantém, se a dor se mantém, e a encaminhar os casos mais graves para as tais consultas de dor”. Podem, “se necessário”, atualizar prescrições “mas habitualmente não o fazem por muito tempo ou só o fazem até à consulta hospitalar onde será definida a necessidade de manter ou não a terapêutica”. “Não prescrevem de forma infinita”, diz ainda a oncologista, lembrando que “qualquer médico tem um perfil de prescrição controlado pelo Infarmed e que recebe alertas se estiver a ultrapassar o limite de prescrição de opioides ou outros fármacos definido”. Ainda assim, não descarta a possibilidade “ínfima” de haver colegas “menos atentos ou responsáveis”.

Fonte: Portugal

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