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O que faz do sistema de saúde na Holanda o melhor da Europa

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A enfermeira Marjolijn Onvlee, de 52 anos, começa sua jornada de trabalho diária às 8 da manhã num escritório com um grupo de dez enfermeiros na Rua Vrolikstraat, na zona leste de Amsterdã. No computador, estão todas as fichas com o histórico de saúde dos sete pacientes que ela vai visitar naquele 8 de março, uma quinta-feira de sol fraco e temperatura baixa na metrópole holandesa. Marjolijn é enfermeira da Buurtzorg, um dos negócios criados na Holanda para prestar serviços de enfermagem em domicílio a idosos, pessoas com dificuldade de locomoção, em recuperação de uma cirurgia ou com algum vício, como álcool e drogas. Criada em 2007, a Buurtzorg tem 850 grupos de enfermeiros, agregando 10.000 profissionais que atendem 70.000 pacientes. Logo que chega, Marjolijn atualiza os prontuários, discute os casos com os colegas. Traça metas a ser alcançadas nos tratamentos e analisa o que já foi conquistado, visando à melhoria da saúde ou da qualidade de vida dos pacientes. “Organizamos tudo antes do atendimento domiciliar, quando orientamos a família sobre o cuidado com o paciente, garantimos que ele siga o tratamento e simplesmente fazemos companhia quando precisa”, diz ela.

EXAME pôde acompanhar uma dessas visitas. Às 3  da tarde, a enfermeira pegou sua bicicleta rumo à residência do último paciente do dia — com esta repórter na garupa. Não demorou nem 10 minutos e ela es-tava na casa de Martijn de Zeeuw, um diretor de escola aposentado, de 86 anos, que vive sozinho num apar-ta-mento de um quarto em frente ao Oosterpark, pri-meiro grande parque público municipal, aberto em 1891. Diabético, o paciente não consegue mais aplicar a in-su-lina sozinho devido a um problema nas pernas que lhe di-ficulta a mobilidade e a capacidade de dar conta dos afa-zeres domésticos. “Os enfermeiros me ajudam a ves-tir a roupa, tomar a medicação e sempre me lembram de não comer chocolate. Não que eu já não saiba”, diz Zeeuw, em tom de brincadeira. “Mas é sempre bom ter al-guém que se preocupa com minha saúde todos os dias.”

Depois de meia hora na casa do paciente, Marjolijn pega novamente a bicicleta e pedala mais 15 minutos pela vizinhança até chegar à clínica onde está Susan de Korte, de 48 anos, a médica de Zeeuw. Não é todo dia que a enfermeira vai até o consultório, mas ela sempre tem em mãos os telefones dos especialistas que acompanham seus pacientes. Ali, elas conversam sobre a saúde de Zeeuw e discutem se é preciso mudar a medicação, algo que só pode ser feito com autorização médica. Nessa clínica, Susan atende cerca de 30 pacientes por dia em consultas que geralmente são rápidas, mas que podem demorar mais tempo se for preciso fazer algum procedimento médico de menor complexidade. Sempre há um espaço na agenda para quem precisa ser atendido no mesmo dia. Além disso, Susan ainda tem tempo para visitar pacientes em casa. “Todas as pessoas que atendo precisam estar próximas da clínica numa distância que permita o deslocamento em 15 minutos para os casos de emergência”, diz Susan.

Saindo do consultório, Marjolijn vai para casa, finalizando mais um dia de trabalho. Sua rotina, no entanto, deixa exemplos de como funciona o sistema de saúde da Holanda, que tem ganhado destaque. O país, que sempre é lembrado pelas bicicletas que lotam as ruas de suas cidades, um símbolo da qualidade de vida da população, ostenta o título de provedor do melhor sistema de saúde europeu. Nos últimos sete anos, a Holanda se manteve no topo do ranking da Health Consumer Powerhouse, organização sueca que funciona como um observatório do consumidor para serviços de saúde. O ranking, iniciado em 2005, analisa 35 países e conside-ra 46 indicadores em seis grupos: os direitos dos pacientes, o acesso aos serviços, os resultados dos trata-mentos, a quantidade de serviços, o incentivo à prevenção e o uso de medicamentos. Na pontuação, que vai até 1 000, a Holanda alcançou 924 na edição deste ano. Os poucos pontos perdidos se devem a poucos números baixos (para o padrão europeu) de alguns indica-dores, como demora de 300 dias para um novo medica-mento entrar no sistema de subsídio do governo — ou seja, para um lançamento chegar a um preço acessível à população.

O que destaca o sistema holandês — e o senhor Zeeuw diz concordar — é a atenção especial ao cuidado primário, para controlar as doenças crônicas e evitar a hospitalização. O objetivo tem sido alcançado com uma rede de quase 14 000 médicos de família, o equivalente a 0,8 para cada 1 000 habitantes, que estão próximos da casa dos pacientes e sempre têm horário disponível, pessoalmente ou por telefone. É como o programa de saúde de família do sistema único brasileiro, que tem médicos em postos nas periferias, mas com um adendo: só vai a um hospital holandês para exames, cirurgias ou consultas com um especialista quem tiver uma carta de recomendação do médico de família ou sofreu um acidente. Os hospitais não estão de portas abertas a quem desejar. Na Holanda, os médicos de família são capazes de resolver 96% dos casos. E quem precisa de serviço hospitalar é atendido rapidamente: a espera para uma cirurgia eletiva, aquela que pode levar mais tempo para ocorrer, é de menos de um mês, em média, para algumas doenças. “A rede de médicos de família torna o acesso ao sistema fácil e o relacionamento com o paciente mais pessoal”, diz Nick Guldemond, professor no Instituto de Política de Saúde e Gestão da Universidade Erasmus, em Roterdã.

Reforma

Contribui para o desempenho do sistema holandês uma reforma feita há mais de uma década. Até 2006, os dois terços de cidadãos de menor renda dispunham de um seguro social de saúde, bancado e gerido pelo governo federal, que tinha uma rede oficial de hospitais e clínicas para o atendimento (alguns ainda se mantêm). Os demais 35% da população eram obrigados a contratar um seguro privado, num mercado pouco regulado. A divisão antiga lembra o esquema brasileiro, com uma massa de pessoas recorrendo ao Sistema Único de Saúde e os demais aos planos privados. O governo holandês decidiu mudar o modelo devido à escalada dos custos, ao difícil acesso aos serviços e à baixa qualidade do atendimento. Desde 2006, todo cidadão é obrigado a comprar um plano de saúde administrado por uma seguradora, a qual pode prestar os serviços ou contratar hospitais, clínicas e médicos que o façam. Para menores de 18 anos e pessoas de baixa renda, a contratação do plano é subsidiada. De resto, o papel do governo ficou restrito a determinar as políticas públicas e regular o mercado. “O principal mérito holandês foi remover os políticos das decisões operacionais do dia a dia”, diz Arne Bjornberg, presidente executivo da Health Consumer Powerhouse.

O sistema holandês é altamente competitivo. Segundo as regras, as seguradoras não podem recusar nenhum cliente, nem que seja de um grupo de risco elevado. Por isso, o governo, as empresas e os cidadãos de maior renda contribuem com impostos que formam um fundo para bancar as perdas das seguradoras com pacientes que demandam mais cuidados e acabam gerando mais custos. Um dos reflexos desse sistema é que ele, ao final, dá mais poder de escolha aos próprios pacientes. Eles decidem o seguro, o médico de família e o hospital que os atenderão, de acordo com a cobertura em sua região. No total, 24 empresas oferecem seguros e, a cada ano, 7% dos cidadãos decidem trocar de provedor, devido aos preços ou à qualidade do atendimento. Além disso, a participação dos cidadãos se dá de outra forma: existem 300 associações de pacientes, que são chamadas a votar nas tomadas de decisão de políticas públicas e na regulamentação do setor. “A reforma foi minuciosamente planejada para que um sistema de concorrência funcione”, diz Francesca Colombo, diretora da divisão de Saúde da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que reúne as nações mais ricas. “Certamente é um bom exemplo prático para países com sistemas similares.”

Há uma corrida das seguradoras na Holanda para oferecer os melhores preços e, portanto, elas buscam reduzir os custos. Na prática, isso acontece quando as seguradoras pagam os hospitais e as clínicas de sua rede com base num preço de referência para tratamento, exame ou cirurgia realizados. Isso significa que o hospital ou a clínica vão receber um valor predeterminado e, se conseguirem gastar menos, sobrará mais ao final do mês como lucro. No médio prazo, isso tende a fazer o preço de referência dos serviços cair, beneficiando todo o sistema. Outra forma de reduzir os custos é a seguradora contratar empresas que acompanham de perto os pacientes, como o que ocorre com a Buurtzorg, da enfermeira Marjolijn. As seguradoras também financiam organizações que visam trazer mais eficiência e melhor atendimento ao sistema.

No Centro Médico da Universidade Radboud, em Nijmegen, uma cidade universitária do leste da Holanda, próxima à fronteira com a Alemanha, as seguradoras investem numa organização chamada ParkinsonNet. Ela é voltada para os pacientes com a doença de Parkinson, cujo número deve alcançar 100 000 no país até 2020. A organização oferece uma formação a especialistas que tratam da doença, os quais podem pagar uma taxa para se tornar membros. Ela ainda lança procedimentos-padrão de tratamento, baseando-se em evidências de pesquisas sobre a doença. Até agora, já foram treinados 3 000 profissionais de 12 especialidades. Além disso, uma rede social foi montada para que o paciente possa encontrar o médico desejado. Criada em 2004, a ParkinsonNet já foi capaz de reduzir à metade o número de acidentes com fratura nos quadris das pessoas com a doença de Parkinson, diminuindo a hospitalização. “A economia por paciente é de 439 dólares por ano, bem maior do que o custo para manter a rede. É por isso que as seguradoras continuam nos financiando”, diz Lonneke Rompen, responsável pela área internacional da ParkinsonNet, que replica o modelo na rede californiana Kaiser Permanente.

Uma parte do sucesso de uma organização como a ParkinsonNet está na tecnologia. O Centro Médico da Universidade Radboud tem sido apontado como um dos mais digitalizados da Holanda. Na ala leste há uma equipe de dez pesquisadores e especialistas em políticas públicas que trabalham exclusivamente para implementar novas tecnologias que possam ser usadas pelos funcionários e pelos pacientes. Alguns médicos e enfermeiros do hospital passam por lá uma vez por semana para contribuir para os programas de pesquisa. O ambiente, parecido com o de uma startup, tem impressoras 3D para reproduzir partes do corpo ou tumores, por exemplo. O departamento desenvolveu o Facetalk, ferramenta que permite fazer consultas médicas por chamadas de vídeo num ambiente amplamente seguro — os holandeses culturalmente prezam bastante a privacidade e a segurança da informação. Também saíram dali dispositivos para medir o nível de estresse dos médicos com base nos batimentos cardíacos ou para medir a pressão do paciente e obter resultados melhores nos tratamentos.

No final do dia, os holandeses têm conseguido controlar melhor os custos do sistema de saúde. Os gastos estão crescendo num ritmo menor do que o registrado antes da reforma de 2006. Há cinco anos, as despesas com saúde estão no patamar de 10% do produto interno bruto. Se nada fosse feito, os holandeses estimam que em 2040 estariam em 30% do PIB. O sistema do país costumava ser o quarto mais caro da Europa, atrás de Luxemburgo, Noruega e Suíça. Nos anos recentes, no entanto, foi ultrapassado pela Suécia e pela Alemanha. O governo tem uma ação efetiva no controle dos custos: é ele que determina quais tratamentos vão ser incluídos nos seguros de saúde, uma cobertura bastante ampla, e ainda fixa um preço máximo para os medicamentos, com base nos valores de referência coletados na Bélgica, na França, na Alemanha e no Reino Unido. Antes dessa regra, os preços dos remédios eram, em média, 20% mais caros do que nos países vizinhos, mas agora foram equalizados. Além disso, o Ministério de Assuntos Econômicos e Clima determinou que a saúde é um dos nove setores prioritários do país, escolhidos conforme sua capacidade de contribuir para o avanço da sociedade holandesa. Para isso, foi criada uma fundação chamada Health-Holland, que realiza parcerias público-privadas, juntando empresas, governo, pacientes e universidades para financiar e executar pesquisas na área. A ideia é promover uma inovação que melhore a saúde das pessoas, mantendo a própria economia holandesa saudável. A indústria de saúde, a academia e o governo trabalham juntos na organização. “Nós inovamos em conjunto com empresas farmacêuticas e de tecnologia, baseados na preferência dos pacientes e mantendo o sistema de saúde viável”, diz Nico van Meeteren, presidente executivo da Health-Holland.

É claro que o sistema holandês tem seus pontos frágeis. Numa conversa com brasileiros e holandeses que moram no país, é normal ouvir que o médico de família tende a não dar muita atenção a problemas de saúde menores, deixando muitas vezes o caso piorar para só então remeter o paciente a um hospital. Os médicos de família reclamam que estão sobrecarregados, com uma quantidade de consultas que precisa ser reduzida para que possam dar mais atenção aos pacientes. Especialistas, por sua vez, dizem que falta às seguradoras exigir mais qualidade dos prestadores de serviço. Reclamações à parte, até agora os holandeses conseguiram dar mais acesso à saúde para a população, com mais atenção ao cuidado básico, menos hospitalização e mais equilíbrio dos custos. No caminho rumo a um sistema mais saudável, os holandeses ainda não resolveram todos os problemas. Mas a receita holandesa está trazendo resultados.

O DESAFIO DOS CUSTOS CONTINUA

O médico holandês Nick Guldemond, uma das maiores autoridades em saúde da Europa, diz que o sistema de seu país está equilibrado, mas sofre com a pressão do custo das inovações

A Holanda conseguiu desenvolver ao longo das últimas décadas um sistema universal de saúde, que atende amplamente os cidadãos, qualquer que seja a faixa de renda. De agora em diante, no entanto, o desafio do país é outro: mesmo sofrendo com as pressões do envelhecimento da população, manter os custos sob controle num cenário de aumento de preços dos medicamentose de novas tecnologias para a saúde. A opinião é do médico holandês Nick Guldemond, professor na Escola de Política de -Saúde e Gestão da Universidade Erasmus, em Roterdã. “De maneira geral, o sistema é sustentável. Mas o país precisa conter o aumento desses custos”, afirma. Considerado uma autoridade em sistemas de saúde e tecnologia, Guldemond é especialista na comissão europeia para estudos sobre políticas na área de saúde digital. A seguir, a entrevista que ele concedeu a -EXAME.

Por que o sistema de saúde holandês é considerado o melhor da Europa?

O país oferece o melhor cuidado de saúde a qualquer paciente, seja ele um milionário ou um sem-teto. Há uma satisfação do cidadão porque é fácil ingressar no sistema, bastando comprar um seguro. Isso dá acesso ao atendimento por um médico de família, que sabe do contexto social do cidadão, acompanha sua saúde e presta orientações.

Como esse sistema foi formulado?

Até 2006, ele era parecido com o sistema brasileiro: os mais pobres tinham atendimento público e os mais ricos seguros privados. Mas o governo tornou obrigatório que todas as pessoas contratassem um seguro, ajudando os mais pobres, e as seguradoras foram incentivadas a oferecer o melhor serviço pelo menor preço, num mercado altamente concorrido. A implicação disso para o paciente é que ele tem liberdade de escolher o seguro e o médico.

De maneira geral, o sistema holandês é caro?

O país desembolsa por ano cerca de 10% do produto interno bruto com a saúde, metade arcada pelo cidadão e a outra pelo governo. Se considerar o custo dividido por cidadão, paga-se em torno de 5 000 euros por ano. É muito dinheiro, mas de maneira geral é um sistema sustentável.

Quais os desafios para o sistema de saúde holandês?

A Holanda precisa conter o aumento dos custos. Antes, o maior problema que pressionava os gastos com saúde era o envelhecimento da população, mas agora há também a elevação do preço dos medicamentos e o custo maior das novas tecnologias.

Como essa questão está sendo resolvida?

A Holanda firma alianças com outros governos para ganhar poder de barganha com a indústria farmacêutica na compra de remédios. E faz avaliações constantes que permitem dizer se uma inovação realmente é eficiente em tratamento e viável em custo.

Esse sistema pode ser replicado no Brasil?

Há elementos que podem ser, sim, replicados, como injetar muita competição no mercado de saúde, algo que resulta em mais eficiência.

Fonte: Info Exame

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